Roquia Sakhawat Hussain e a ficção científica feminista

A ficção científica feminista no Brasil não tem uma longa tradição, mas lá fora já é bem desenvolvida e tem sua introdução na literatura no começo do século XX. Foi quando uma escritora e feminista bengali sentou para escrever um conto onde imaginava o mundo sendo controlado pelas mulheres, onde a ciência pacificou e melhorou o mundo, uma visão mais necessária do que nunca nos dias atuais.

Roquia Sakhawat Hussain e a ficção científica feminista


Quando a primeira coletânea Universo Desconstruído de ficção científica feminista saiu, uma das primeiras coisas que nos acusaram foi de que a gente estava "inventando moda". Choveu gente falando que isso era "desmerecer e enfraquecer" fosse a FC, fosse o feminismo. E foi preciso explicar insistentemente que não, nós não tínhamos inventado nada, na verdade eram eles que estavam bem desinformados, como todo preconceituoso costuma ser.

Na ficção científica feminista, nós temos enredos ficcionais, utilizando-se de cenários de ficção científica, mas que se baseiam em pautas feministas, como por exemplo, a opressão, o preconceito de gênero, estupro, aborto, baixos salários, baixa representatividade em certas áreas do mercado de trabalho e da ciência, e por aí. Você pega um problema ou uma questão discutida com frequência no feminismo e transforma em uma narrativa dentro da ficção científica.

E isso não é novo. No Brasil as coletâneas do Universo Desconstruído foram as pioneiras, lançadas em 2013 e depois em 2015, mas lá fora a Joanna Russ e a James Tiptree Jr. já vinham trabalhando muitos temas em seus livros e contos, bem como Marge Piercy, desde os anos 1960, pelo menos, pegando a segunda onda do feminismo.

Mas se podemos estabelecer o trabalho que levou à FC Feminista como nós a conhecemos é o trabalho de Begum Rokeya, ou Roquia Sakhawat Hussain, nascida em Rangpur, uma cidade que hoje é em Bangladesh, em 1880. Na época, a região fazia parte da Índia Britânica e Roquia foi uma das primeiras mulheres muçulmanas a expôr suas opiniões a respeito da desigualdade de gênero, acreditando que a disparidade entre homens e mulheres só seria resolvida com um acesso igual à educação. É considerada uma das primeiras feministas bengali, bem como uma pioneira entre escritores muçulmanos da assim chamada Renascença Bengali.

Casando-se muito nova, seu marido defendia a educação feminina e encorajava Roquia a estudar e a escrever. Apesar de ser uma escritora tão reconhecida em seu país, ela nunca teve educação formal, pois seu pai era extremamente tradicional e não permitiu que as filhas fossem à escola. Aprender a ler servia apenas para a leitura do livro sagrado. Ela então aprendeu a ler e a escrever em bengali com a irmã, a poeta Karimunnesa Khatun e em inglês com seu irmão mais velho, Ibrahim Saber. Muitas famílias muçulmanas abastadas se recusavam a aprender o bengali ou o hindi, preferindo falar o persa ou o árabe, mas Roquia sabia que só atingiria as pessoas se escrevesse nos idiomas mais acessíveis e populares.

Escreveu poesias, ensaios, contos e livros, sempre se valendo deles para criticar a desigualdade e o preconceito para com a mulher na sociedade. Bateu de frente com líderes muçulmanos que não acreditavam que meninas devessem ir para a escola, usando o próprio livro sagrado, o Corão, que garante o acesso à educação igualmente. Tanto que Roquia abriu a primeira escola para garotas bengali em Calcutá, que ainda está em funcionamento. Fundou a Associação de Mulheres Muçulmanas que visava apoiar mulheres na busca por ensino básico ou superior e acesso a empregos.

doodle do Google pelos 137 anos de Roquia
Doodle do Google pelos 137 anos de Roquia

Sua obra mais conhecida é O Sonho da Sultana. É um conto de ficção científica, uma utopia, onde os homens, envergonhados pela destruição que causaram com guerras, retornam para casa e acontece uma inversão de papéis. Eles ficam restritos ao ambiente do lar, cuidando das crianças e da casa, enquanto as mulheres vão para as faculdades, para os tribunais, para os gabinetes políticos. A inversão de papéis era para tentar colocar os homens no lugar das mulheres e fazê-los sentir na pele como funciona a opressão de gênero e o preconceito. Ela inclusive escreveu a novela em bengali na tentativa de alcançar o maior número possível de mulheres.

Sua família seguia à risca a purdah, que é a prática de impedir as mulheres de serem vistas pelos homens que não sejam seus parentes diretos e Roquia se tornou bastante crítica dessa prática, algo que vemos em O Sonho da Sultana. Roquia inverteu os papéis em seu conto para poder evidenciar a opressão de gênero, descrevendo como as mulheres pacificaram o mundo e criaram inovações como carros voadores, coleta de água da chuva e painéis solares. Tudo isso em 1905!

A prática da purdah pode ser comparada com maior precisão ao mortal gás carbônico. Como mata sem dor, as pessoas não têm oportunidade de tomar precauções contra ele. Da mesma forma, as mulheres na purdah estão morrendo pouco a pouco, em silêncio por causa desse ❝gás❞, sem sentir dor.

Bengal Women's Educational Conference

Um tema recorrente em seus escritos era o direito à educação, empoderamento e emancipação feminina. Sempre se valendo de inversões de papéis e sátiras, Roquia acreditava que mulheres eram tão boas quanto homens, até melhores. Batia de frente com parentes, com políticos e líderes religiosos, era feroz nas descrições das condições das mulheres, organizava conferências, abriu escolas e fundou organizações, e ainda hoje é uma das pensadoras feministas e escritoras mais famosas em Bangladesh. Seu aniversário, 9 de dezembro, é celebrado em todo o país e até na entrada do campus universitário na capital há uma estátua sua, segurando livros.

Roquia nos deixou em 1932. Já era viúva e sem filhos há muito tempo. Assim dedicou toda a sua vida a garantir escolas e oportunidades para as mulheres de seu país, abraçou a causa feminina permitindo que as mulheres sonhassem e pudessem voar, tal como as habitantes da TerraD'Elas, em O Sonho da Sultana.

Até mais!

Leia também:

Leia mais:
Tale of a visionary - The Daily Star
How Begum Rokeya — India's first Bengali Muslim feminist — dared women to dream - Daily
Baixe O Sonho da Sultana em português e gratuitamente!

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Comentários

  1. Já havia lido O Sonho da Sultana, recomendado por você aqui no blog, mas não conhecia a vida e a história de Roquia.
    Gente, que ser humano admirável!
    Gostei muito de saber um pouco mais.
    Abraços!

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