Judith Merril, uma das mães da ficção científica

Tem uma galera dentro da ficção científica que desconhece profundamente o gênero e que acredita que as mulheres só começaram a escrever FC de uns dez, quinze anos pra cá. Só de ter a coragem de dizer uma patifaria dessas mostra o quão pouco eles conhecem do gênero que dizem curtir. Judith Merril é considerada uma das grandes mães da ficção científica contemporânea e impactou profundamente a produção de FC em sua época.

Judith Merril, uma das mães da ficção científica

Escritora, editora, ativista, Judith nasceu como Judith Josephine Grossman. Foi um dos poucos nomes femininos de destaque no cenário da ficção científica da década de 1950. Vinda de uma tradicional família judaica, seu pai cometeu suicídio quando a Crise de 1929 se estabeleceu. Junto da mãe, ela se mudou para a cidade de Nova York, onde começou a se envolver com o movimento sionista.

Judith entendeu desde sempre que era impossível dissociar arte de política. Em 1947, começou uma carreira sólida, escrevendo livros, contos e críticas ácidas. Seu pai, Samuel, deve ter sido uma das influências na escrita, já que ele também era colunista e crítico de drama e teatro para o jornal Yiddish. Sua obra é grandemente marcada pela busca por elucidar as mudanças que ocorrem ao longo de sucessivas gerações de mulheres. Escreveu sobre sexo, maternidade, identidade feminina, o medo do alienígena, gravidez, amor. Em um universo dominado por homens, Judith falava de feminismo e tinha posições esquerdistas, o que incomodava muita gente.

Sobre Judith, o escritor J.G. Ballard escreveu:

A mulher mais forte de um gênero, em grande parte, criado por homens tímidos e fracos.

A leitura do Manifesto Comunista e o tratado entre a União Soviética com a Alemanha Nazista lhe fez repensar sua posição sionista. Foi em um piquenique da Juventude Trotskista que ela conheceu seu primeiro marido, com quem se casou em 1942 e teve uma filha. O casal viveu em condomínios para militares em vários lugares do país depois disso.

Com o fim da guerra, Judith ingressou no grupo dos Futuristas, sendo uma das únicas mulheres em um grupo do qual faziam parte Isaac Asimov, James Blish, C. M. Kornbluth e Frederik Pohl (que viria a ser seu futuro marido). Com o divórcio, em 1946, Judith se dedicou à escrita para conseguir sustentar a si e à filha, escrevendo contos curtos e editando para a Bantam Books, sempre usando pseudônimos masculinos. Seu primeiro conto, tido hoje como um grande clássico do gênero, reflete o medo coletivo da catástrofe nuclear após as bombas de Hiroshima e Nagasaki.

That Only a Mother foi publicado na Astounding Science Fiction, edição de junho de 1948. O conto surgiu de uma aposta com o conhecido editor de ficção científica, John W. Campbell, um notório misógino e racista, que dizia que mulheres não conseguiriam escrever um conto de ficção científica bom o bastante para entrar na sua revista. Não apenas a aposta foi ganha como este conto se tornou um dos mais conhecidos da autora e um dos mais reproduzidos em antologias de FC dos Estados Unidos.

O conto fala de uma criança com várias deformidades congênitas que nasceu depois de sua mãe ser exposta à radiação. É um enredo que, sem dúvida, reflete o imaginário coletivo da época, que temia as consequências de uma guerra nuclear mundial. Judith trouxe à ficção científica, ainda mais em uma época profundamente dominada por homens brancos, o olhar feminino que faltava e demonstrou com maestria que a FC é uma forma de se fazer extrapolações sobre o futuro, mas também de analisar a condição humana em enredos que tratem de nossa realidade.

O medo do holocausto nuclear também motivou seu romance Shadow on the Hearth, sobre uma mãe e suas duas crianças que precisam sobreviver em uma cidade de Nova York após a detonação de várias bombas nucleares. Impossível não falar de política em um livro assim e logo os críticos começaram a apontar isso como sendo uma das principais características de Judith. O livro foi adaptado para a TV em 1954 com o nome de Atomic Attack.

Judith criou e participou de grupos de escritores de FC durante a vida. Precisou lutar contra o sistema que simplesmente ignorava as mulheres dentro da ficção científica e preferia o gênero desta forma. Motivou muitos escritores em começo de carreira e sua neta, Emily Pohl-Weary, hoje também é escritora e editora. Foi Judith quem editou a primeira coletânea canadense de ficção científica e fantasia contemporânea, a Tesseracts.

Crítica da guerra desde aos anos 1940, a violência no Vietnã e contra os ativistas anti-guerra na convenção nacional do Partido Democrata, em 1968, a motivou a abandonar os Estados Unidos e partir para o Canadá. Levando sua extensa coleção pessoal de ficção científica, quando Judith partiu rumo às estrelas, ela doou sua coleção para a Biblioteca Pública de Toronto, coleção hoje que leva seu nome e é uma das maiores do Canadá, com atualmente mais de 70 mil volumes. Depois de se tornar cidadã canadense, Judith ajudou a formar vários escritores de FC, sendo uma das inspirações de Margaret Atwood.

Sua produção surpreende por ser pequena. Tirando alguns romances e contos, o trabalho de Judith Merril foi principalmente editando livros e coletâneas e participando de convenções e grupos de leitura de FC. Sua antologia de 1968, England Swings SF, levou muitos leitores nos Estados Unidos a conhecer autores britânicos, como Brian Aldiss e J. G. Ballard. Seu ativismo político era sua principal característica, tendo participado de marchas e encontros de partidos de esquerda, lutando contra a violência e contra o capitalismo desenfreado. Pouco antes de morrer, participava de marchas pela paz e de encontros de escritores, além de ter organizado um comitê de acolhida a refugiados.

É uma pena que seu trabalho não tenha sido mais reeditado nas últimas décadas. Sua neta escreveu sua biografia e ganhou um Hugo Award por ela, Better to Have Loved, em 2003. Judith é exatamente o exemplo de atuação literária e política que o cenário hoje precisa.

Até mais!

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Leia mais:
Better to Have Loved: The Life of Judith Merril, por Judith Merril e Emily Pohl-Weary
Judith Merril Website

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