Joanna Russ, a crítica feminista

Joanna Russ foi e ainda é uma das grandes vozes da ficção científica, especialmente a feminista. Foi uma importante crítica dos trabalhos de vários autores, não poupando palavras na hora de debater a misoginia dentro do gênero e rebatendo na forma de artigos, livros e contos. Infelizmente, seus trabalhos não estão disponíveis em português, e mesmo em inglês algumas de suas obras estão esgotadas ou são difíceis de achar.

Joanna Russ, a crítica feminista



Joanna nasceu na cidade de Nova Iorque, em 1937 e nos deixou em 2011, com um grande legado de críticas, ensaios e obras de ficção científica, de crítica literária e feminista. Mordaz em seus comentários, Joanna não tinha papas na língua ao criticar obras de contemporâneos em análises da produção literária de FC. Foi duramente combatida e rebatida por outros autores, obviamente, já que ela observava a forma como personagens femininas eram tratadas em livros e via que os autores nem ao menos se esforçavam em fazer delas algo mais do que um bibelô.

Ficção científica está cheia de imagens de mulheres. Mas quase não há mulheres.

Considerando a ficção científica uma forma de se contar histórias que outros gêneros não conseguiriam, Joanna se destaca nos anos 1970, ao lado de Octavia Butler, Ursula K. Le Guin, Marge Piercy e James Tiptree Jr. ao criar enredos que desafiassem as lógicas masculinas com as quais tantos ainda hoje trabalham. É sim possível se valer da intensa imaginação e extrapolação oferecidas pela ficção científica para criar muitos cenários (passados, presentes e futuristas) que saíam da aventura fálica da narrativa hetero, cisgênero e patriarcal. Essas mulheres pararam em frente às suas máquinas de escrever e se perguntaram: e se?.

Mas nem mesmo as mulheres estão livres de reproduzir o machismo da sociedade, como Joanna muito bem apontou em sua resenha sobre A Mão Esquerda da Escuridão, um dos grandes clássicos de FC, da nossa saudosa Ursula. Esse também é um ponto que me desagradou no romance e me fez largá-lo. No mundo de Gethen, os habitantes são andróginos e oscilam entre o feminino e o masculino. Pois quando se encontram no feminino, eles repetem estereótipos de gênero como sendo muito sensíveis e outros temas tão firmemente atados ao feminino.

Em defesa da Ursula, ela mesma admitiu que precisou escrever em mundos e narrativas tipicamente masculinas (como O Feiticeiro de Terramar) para poder ser publicada no início de sua carreira e que isso refletiu na sua forma de criar personagens. As autoras que estavam desafiando as convenções do gênero estavam distantes de sua experiência como autora e ela precisou se submeter ao que os editores queriam. Joanna destacou essas falhas do romance com veemência, indicando que mesmo as mulheres não conseguem escapar das armadilhas de uma criação patriarcal quando criam arte.

Muitos criticaram Joanna por ela sempre levantar questões políticas, de gênero e de sexualidade em suas resenhas e críticas literárias, principalmente questões envolvendo misoginia, homofobia e racismo. Joanna, que era lésbica, já problematizava essas questões antes dos textões da internet e, tal como acontece ainda hoje, era rebatida com a velha reclamação de "não problematize meu entretenimento!". É impossível deixar de avaliar questões políticas da arte já que a arte é política e é preciso reconhecer e avaliar tais questões e Joanna afirmou que não deixaria de fazer essas leituras enquanto os autores continuassem a tratá-las em seus trabalhos.

Ficção científica é literatura?

É.

Ela deve ser analisada pelo critério literário comum?

Não.

Sua estridente crítica ao status quo da ficção científica também batia de frente com a crítica literária que desprezava (e despreza) a FC, que alega que ela seja algo menor, escapista, sem valor. Sem entender a lógica científica dos enredos de FC, os críticos não têm condições de fazer as análises que fariam em qualquer romance realista. E Joanna era bem contundente nessa questão, o que se refletia na produção acadêmica. É o que vemos aqui, onde a academia vem retomando as análises dentro da ficção especulativa em geral após longas décadas de ostracismo, onde apenas o realismo era tido como literatura séria e estudada.

O que para um crítico literário padrão é bizarro e implausível é apenas preciso do ponto de vista do autor de ficção científica e a falta de compreensão dessa premissa leva muitos a achar que são apenas devaneios desprovidos de qualidade e/ou crítica. Um enredo que se passe em um planeta como Júpiter terá toda uma dinâmica física e tectônica diferente da nossa, com novas formas de aplicação das leis da física, que impactarão nas formas de vida. É um cenário que vai obliterar a visão do crítico para o que importa, que é o enredo.

Para Joanna, não se deve criticar FC como se faz com um livro de realismo. E com o aumento no interesse pela ficção científica - e veja o mundo em que vivemos hoje, veja o que outros autores como George Orweel, Octavia Butler e Margaret Atwood já nos mostraram - há um rápido aumento na procura por esses livros, portanto a crítica precisa também se especializar e analisar o gênero (que sim, decolou e está voando lindamente, inclusive no Brasil, apesar do que dizem a l g u m a s pessoas) sob um novo olhar. Uma crítica simplista tende a simplificar a obra.

É realmente uma pena que o trabalho de Joanna não esteja em português. Tanto nas livrarias quanto nas bibliotecas das universidades, seus trabalhos são todos em inglês, o que restringe e muito o acesso e o debate sobre sua produção. Só posso torcer que obras como seu clássico The Female Man um dia sejam traduzidos para nosso idioma. Joanna tem muito ainda a nos dizer e a nos ensinar.

A ficção científica também é a única forma literária moderna (com a possível exceção das histórias de detetives) que incorpora em suas suposições básicas a convicção de que descobrir ou conhecer algo - por mais impraticável que seja o conhecimento - é um bem crucial.

Até mais!


Leia também:


Leia mais:
RUSS, Joanna. To Write Like a Woman. Essays in Feminism and Science Fiction. Indiana University Press. 2016. 200 páginas.
Joanna Russ, the Science-Fiction Writer Who Said No - The New Yorker

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