James Tiptree, Jr., que mulher!

Se tem um nome que agitou a ficção científica por muito tempo, este nome é James Tiptree, Jr.. Por anos, ela confundiu editores e leitores com seus livros descritos como "tipicamente masculinos" e matérias sobre o tal autor discutiam que seria impossível James ser uma mulher pela escrita madura, concisa, pelas aventuras espaciais e discussões feitas em contos e romances. Além disso, James era conhecido por entender a "alma feminina".

James Tiptree, Jr., que mulher!

Ninguém que eu conheça jamais conheceu Tiptree, nunca o viu ou falou com ele ao telefone. Ninguém sabe onde ele mora, como se parece, o que faz da vida. (...) Ele não disponibiliza nenhuma informação sobre sua vida pessoal e educadamente recusa responder qualquer pergunta a respeito. (...) A maioria das pessoas do meio da ficção científica morre de vontade de saber como Tiptree realmente é.

Gardner Dozois, 1976

James apareceu no cenário da ficção científica norte-americana no final dos anos 1960. Sua escrita era rápida, com ação, foguetes, sexo com alienígenas, burocracia espacial e moral intergaláctica. Era um escritor de inegável talento, brilhante, com um profundo conhecimento e autoridade para passar diversas mensagens por suas histórias. Mas James era, em si, também uma ficção criada por Alice Sheldon, escritora, ex-analista da CIA e psicóloga. Apesar de se manter distante da mídia, James/Alice trocava cartas com editores, leitores, outros escritores e tudo o que sabiam sobre ele era sua caixa-postal em McLean, Virginia.

Vinda de uma família de intelectuais e artistas, a pequena Alice experimentou um mundo de viagens, livros e arte desde muito cedo. Nascida em Chicago, em 24 de agosto de 1915, viajou pela África, estudou na Suíça, recebeu uma educação progressista para a época, casou-se muito cedo, aos 19 anos e quando se divorciou, em 1941, se alistou na Força Aérea, onde chegou ao posto de major trabalhando com fotos áreas na força-tarefa da inteligência.

Nessa época conheceu seu segundo marido, com quem ficaria até a morte. Convidada para trabalhar na CIA, ela saiu da agência em 1955 para fazer faculdade, onde concluiu o bacharelado em Artes e depois defendeu doutorado em Psicologia Experimental. Tendo sido ávida leitora de várias revistas de ficção científica e fantasia na infância e adolescência, Alice começou a arriscar e enviou seus contos para revistas por volta dessa época.

É aqui também que surge a ideia do pseudônimo. Tiptree é uma marca de geleia que Alice viu numa mercearia perto da sua casa. Ela transformou o pote de geleia numa pessoa ao juntar James e seu marido adicionou o Jr., criando o famoso escritor. Alice disse que queria um nome que editor nenhum esquecesse. E ela escolheu o pseudônimo por outro motivo muito simples:

Um nome masculino me parecia uma boa camuflagem. Tinha a sensação de que um homem poderia errar sem ser julgado. Tive muitas experiências na vida em ser a primeira mulher em qualquer ocupação.

Ser homem é errar sem ser julgado e errar e ser perdoado. Até quando um homem mata alguém, especialmente uma mulher, ele recebe uma passada de mão na cabeça de muita gente, dizendo que a culpa foi da vítima. Tendo sido pioneira em muita coisa e trabalhando em ambientes predominantemente masculinos, como a comunidade da inteligência, Alice, ou Alli, como gostava de ser chamada por amigos e parentes, sabia que o véu de anonimato dado pela figura de James encobriria qualquer deslize literário que ela viesse a cometer. Além disso, "ele" justificava que não revelava sua identidade para que ninguém no seu trabalho soubesse que escrevia ficção científica.

E de fato funcionou. Tal como uma agente secreta, com uma vida dupla, Alli escreveu sobre sexualidade, sobre morte, sobre humanidade de maneira a encantar leitores e editores. Havia uma ousadia em seus escritos que poucos já tinham visto, o que incendiou a comunidade de ficção científica por um bom tempo. Mas quando a mãe de Alli morreu e ela comentou com uns amigos sobre a mãe ser artista e escritora, alguns fãs acabaram achando o obituário em um jornal de Chicago e relacionou com o nome da filha, Alice Sheldon, que aparecia no final. Começava então uma boataria danada, chegando ao ponto de editoriais de escritores defenderem que James era homem por sua escrita caracteristicamente "masculina".

Robert Silverberg assim escreveu:

Estão sugerindo que Tiptree é mulher, teoria que acho absurda, pois tem algo inevitavelmente masculino em suas obras.

Certo...

Tal como outros escritores da época, Alli usava a ficção científica para falar sobre a empatia, sobre o que é ser um indivíduo humano e a importância de se investigar essa definição e ir além dela. Não apenas suas obras falavam de tecnologia espacial, foguetes e agentes do governo, como havia personagens femininas que não estavam lá para serem salvar ou serem o interesse romântico; havia questionamentos e abordagens sobre sexualidade e gênero. Tanto que Tiptree era tido como um "verdadeiro feminista", aquele que entendia da luta e da alma das mulheres. Fico pensando em Alli, em sua casa, dando risada ao lado do marido, enquanto seus colegas escritores defendiam que ela era um homem por sua escrita ser considerada "universal".

O prestígio de Tiptree era tal que ele chegou a recomendar para colegas escritores e editores os trabalhos de uma escritora chamada Racoona Sheldon, que claramente se inspirava nos trabalhos de Titpree. Pedia que a levassem a sério e analisassem seu trabalho, a seu pedido. O que ninguém sabia era que Racoona também era Alli.

De personalidade cativante e magnética, Alli era uma mulher de atitude, de intensa personalidade, de vontades e conversa fácil. Viver a personalidade de Tiptree a ajudou a escrever sobre seus próprios limites, sua própria sexualidade, imaginando o que não tinha como ser dito em palavras. Por ser dominado por homens, e como disse Ursula K. Le Guin: este era um mundo para o qual os homens fizeram as regras, Tiptreee subverteu o sistema ao seu favor. Ela queria escrever para todo mundo, não apenas metade das pessoas e para isso o pseudônimo masculino era mais que adequado, apesar de ser também péssimo se passar por homem para poder escrever.

Sua morte trágica em 19 de maio de 1987, aos 71 anos, não significou o fim de seu trabalho. Ela continua mais do que influente, sendo citada por autores como William Gibson e hoje está lado a lado de grandes autores de ficção científica como Ursula Le Guin, Joanna Russ e Philip K. Dick. Um prêmio foi criado com seu nome, em 1991, para obras de ficção científica ou de fantasia, que expandam ou exploram a compreensão do gênero. Uma pena não temos obras suas em português para que o público tenha acesso às suas discussões, seus personagens e mundos. Mas sua subversão, sua ousadia, isso ninguém vai apagar.

Os homens se anteciparam tanto na área da experiência humana que quando você escreve sobre temas universais, assume-se que você está escrevendo feito homem.

Alice Sheldon (a.k.a. James Tiptree, Jr.)

Leia também:


Leia mais:
Summary Bibliography: James Tiptree, Jr.
Science fiction's women problem - The Conversation
Is the future female? Fixing sci-fi’s women problem - The Guardian
Where to Start with the Works of James Tiptree, Jr. - Tor
The Woman Behind James Tiptree, Jr. - Daily Jstor

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