Visões de futuro: o que a ficção científica pode nos ensinar

Eu digo com bastante frequência e continuarei repetindo: ficção científica não tem obrigação de prever o futuro. Sobre o futuro eu sei tanto quanto você. Ursula K. LeGuin sempre disse que a função do escritor é mentir. Como eu vou mentir para você em uma história de ficção científica é que pode ser determinante para você viajar na ficção. Mas às vezes as mentiras estão tão alicerçadas no momento em que foram escritas que elas acabam se tornando alertas para nós.

The Future, arte de Josan Gonzalez



A ficção científica pode nos alertar para o futuro e isso ela faz muito bem. Por mais que cenários extremos como o de A Estrada, de Cormac McCarthy pareçam distantes, ainda há situações a se analisar em obras como essa. E não é de se estranhar que nos tempos atuais obras como 1984, O Conto da Aia e Blade Runner estejam gerando discussões. É só ligar a TV e acompanhar as notícias que vemos as terríveis semelhanças com muitos enredos que conhecemos.


Perdas de direitos
Quando uma crise ameaça a economia, uma das primeiras coisas que acontecem é o ataque aos grupos minoritários e aos poucos direitos que possuem. Não faz muito tempo, o estado do Alabama passou uma das mais rigorosas leis anti-aborto, feita por homens que desconhecem profundamente o corpo feminino, a própria realidade e a concepção em si. Livros como O Conto da Aia e Vox são diretos nesse sentido, bem como o juvenil Graça e Fúria. As mulheres perderam os direitos, foram oprimidas, silenciadas e colocadas em posição de subserviência. A resistência e a insurreição estão logo adiante.

E a perda de direitos nunca se resume a apenas um grupo subrepresentado. Ela se estende a vários. São indígenas perdendo terras e sua própria subsistência, são quilombolas sem suas terras ancestrais, é a população LGBT e negra morrendo nas ruas e com menor sobrevida que outros grupos. Para as minorias é distopia todo dia.


Pobres X Ricos
Pobres X Ricos é um tema comum da ficção científica. Pegue Elysium e Jogos Vorazes. Elysium, como diz o próprio diretor, Neill Blomkamp, não é uma previsão, mas sim uma observação, pois aquilo já está acontecendo. O filme leva a crítica ao extremo, mas a realidade é que pobres estão vivendo em condições cada vez mais insalubres, sem atendimento médico de qualidade, enquanto ricos se isolam em suas ilhas tecnológicas e inacessíveis, além de hostis para tudo o que vem de fora. Ricos vivem em cápsulas: do carro para o shopping, do shopping para o condomínio fechado. Elysium é isso, uma cápsula, um Morumbi do espaço, o que o torna ainda mais longe e distante para aqueles que queiram lá viver.

A Capital, em Jogos Vorazes, é outro símbolo de opulência e exagero, enquanto as pessoas nos distritos mais distantes passam fome. Um lugar onde as pessoas vomitam para poderem comer ainda mais nas festas, enquanto assistem crianças e adolescentes morrendo em um reality show. No que isso é diferente de qualquer noticiário, onde operações da polícia entram atirando em comunidades, matando jovens que estão descendo para o treino de futebol com cobertura ao vivo do jornal sensacionalista?


Distorção da realidade
Em um mundo em que cientistas são chamados para provar que a Terra é esférica, fica aí a questão: como que chegamos a esse ponto? Como que começamos a duvidar de verdades estabelecidas a ponto de crer em mitos sem nenhuma corroboração? O livro 1984 nos mostra que construir realidades paralelas não é tão difícil se você detém o poder. Alterando fatos e depois repetindo-os como se fossem verdades absolutas não é difícil. Aliás, com as redes sociais e sistemas de mensagens instantâneas e gratuitas, ficou ainda mais fácil criar mentiras (ou fake news) e espalhar por aí. O ditado diz que a verdade está calçando as botas enquanto a mentira corre o mundo. E é mesmo.

Não é só a questão das mentiras disseminadas e até corroboradas por chefes de Estado, mas a vigilância constante, como câmeras com reconhecimento facial e óculos de realidade aumentada sendo usadas por policiais. Person of Interest nos mostrou os riscos da vigilância extrema e como nós entregamos nossos dados com extrema facilidade em redes sociais e sites de compra, ao mesmo tempo que reclamamos de violações de privacidade. O próprio Finch, protagonista e criador da Máquina que prevê crimes e atentados, comenta que não é preciso hackear a vida de ninguém, é só abrir as redes sociais e entrar em um mundo paralelo.


Mudanças climáticas
Quando vemos ou lemos A Estrada, de Cormac McCarthy notamos que algum grande desastre ambiental aconteceu. Não sabemos o que foi, mas suspeito que foi um meteoro ou um grande vulcanismo, pois a vegetação morreu, os animais de abate também, chove cinzas o tempo inteiro e mulheres e crianças são caçadas para virarem comida. Foi como eu disse lá em cima, qualquer crise e grupos minoritários são os primeiros a ser atacados.

Mudanças climáticas são causadas tanto em escala regional como global. Numa escola regional, a humanidade conseguiu praticamente secar o mar de Aral devido ao manejo ineficiente da água e em escala global, as chuvas e os furacões já estão aumentando de intensidade. Não há outro planeta para fugir, não há outro lugar onde se viver, então por que ninguém está agindo com a urgência que o assunto precisa? Porque até mesmo na catástrofe alguém está lucrando alguma coisa, como no filme Cargo. É mais fácil surfar no lucro da tragédia do que alterar todo um sistema baseado na exploração de recursos naturais.

O Dia Depois de Amanhã viaja na maionese com mudanças climáticas globais em questão de dias, mas acerta ao mostrar as pessoas desamparadas e perdidas, buscando abrigo nos países mais quentes, aqueles que sempre foram explorados pelos países de primeiro mundo. O filme Star Trek IV: A Volta para Casa nos mostrou que a extinção das baleias quase levou a raça humana à extinção. Se isso não é alerta, não sei mais o que pode ser.


Inteligências artificiais
Um dos temas mais explorados pela ficção científica é também um dos mais pertinentes nos dias de hoje. Estamos cercadas por inteligências artificiais capazes de marcar hora no salão de beleza para você sem sua intervenção, capazes de fazer lembretes, de seguir nossos passos na rua. Robôs, em especial as sexuais, são cada dia mais comuns, como o que vemos em Cherry 2000. Mas se nós desumanizamos seres humanos, Humans imaginou o que podemos fazer com robôs tão parecidos com a gente. AI, Inteligência Artificial, tinha as Feiras da Carne, onde a "vida" era celebrada simplesmente destruindo robôs das mais variadas formas.

Em 2016, um experimento da Microsoft mostrou como as inteligências artificiais podem ser vítimas de manipulação. Um bot chamado Tay começou a interagir com usuários do Twitter e em poucas horas estava enaltecendo o nazismo. Enquanto a inteligência artificial tenha aplicações importantes, como por exemplo, na exploração espacial, onde acredito que ela seja essencial, a ficção científica nos mostra com frequência o que pode acontecer se antropomorfizarmos demais as máquinas.

Não que a gente já não faça isso. Eu admito que chorei quando o Opportunity parou de responder em Marte. Pessoas estão dando nomes para seus aspiradores de pó automáticos. O que dirá ter um robô que seja igualzinho a um ser humano? Qual a nossa responsabilidade social com esses robôs?


Há muitos mais alertas e ensinamentos que podemos tirar de livros, séries e filmes de ficção científica. O que trabalhei aqui é aquilo que acho mais urgente e pertinente. No fim, acredito que o principal alerta que a ficção científica pode deixar para nós é que a maior ameaça à raça humana somos nós mesmos.

Até mais.


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Comentários

  1. Texto ótimo, adoro os paralelos com a realidade que a ficção traça e fostes muito precisa ao identificar as questões nos livros/filmes mencionados.
    Nosso mundo parece, depois de muito caminhar, ter ouvido um comando de "meia-volta, volver"! E agora retrocede, atropelando o que vinha vindo. Cada vez mais vemos conquistas que foram fruto de tanto trabalho sendo postas em cheque de forma que às vezes até cansa. Penso até que ponto não estamos tão longe assim de algumas distopias que já lemos/assistimos...

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