Um dos meus filmes favoritos de ficção científica é uma produção conjunta entre Alemanha e Suíça chamada Cargo (2009). Procurei o filme na Netflix, mas vi que ela está no Amazon Prime gringo, então não sei dizer para você se ele está disponível para nós por aqui. É um filme de ritmo mais lento, sem as grandiosas cenas de ação de filmes norte-americanos, mas um filme que fala direto com a nossa realidade e evoca questões importantes sobre a exploração do espaço e do meio ambiente.
Cargo é o primeiro filme suíço de ficção científica. Em um futuro próximo, as pessoas precisaram se refugiar em uma estação espacial na órbita da Terra que passou por um colapso ambiental. Chuvas ácidas são um grande problema, a situação do planeta piorou muito e o único jeito de sobreviver é no espaço. Nesta estação espacial lotada está a médica Laura Porter, que está tentando juntar dinheiro para conseguir uma passagem para Rhea, um planeta paradisíaco, mas de acesso restrito. É preciso ter muita grana para conseguir autorização para se mudar para Rhea, então ele não está acessível para todo mundo. A irmã de Laura e seus sobrinhos já moram lá.
Laura então consegue um emprego em uma nave de carga, a Kassandra, que está levando carga e equipamentos para uma tal Estação 42. A viagem vai durar 4 anos, em velocidade máxima e vai pagar sua passagem para Rhea. A tripulação se reveza entre o hipersono e períodos de vigília na nave para monitorar as funções e as câmaras dos colegas, mas ninguém têm acesso à navegação, isso já vem programado pela empresa. O último período de vigília é de Laura. E é no período dela, solitário e frio, que ela descobre uma violação na área de carga da nave. Por protocolo, Laura deve acordar o capitão, o que o Marechal Samuel Decker, um tipo de chefe de segurança adicional, desaconselha, já que não sabem o que aconteceu.
A presença dele é devido às ameaças de um grupo de ecoterroristas chamado Maschinenstürmer. Eles alegam que a população está sendo enganada a respeito da Terra. Sim, a crise ambiental foi grave, mas eles têm provas de que é possível cultivar comida novamente e que ninguém precisa sonhar com Rhea ou viver na miséria na estação espacial. Obviamente que eles sofrem uma forte perseguição do governo e da empresa responsável pela manutenção de Rhea. O Maschinenstürmer é um grupo neo-ludita, que fazendo alusão ao movimento ludista na Inglaterra que se opunha aos avanços tecnológicos em curso, se opõe à terraformação quando se tem um planeta perfeito para se ocupar.
Laura e Decker |
O filme já vale por toda essa discussão e pelos cenários desgastados, solitários e frios do espaço. O ser humano tem um organismo extremamente complexo, que precisa de muitas variáveis para se manter saudável. É a pressão do ar, é a composição do ar, é a gravidade, é a necessidade de dormir, beber água e se alimentar. Um robô não precisa de nada disso. Mas a partir do momento em que a Terra passa a se tornar inabitável, o espaço e a busca por um novo planeta se tornam a única saída. E é claro que é fácil lucrar com desgraça. Empresas encontram nichos para explorar, como o de Rhea, que não é esse paraíso todo e há sim uma conspiração em curso. Relaxa, não darei o spoiler.
Não precisamos ir muito longe para ver empresas tentando lucrar com a crise e o colapso ambiental neste instante. O estado baniu o canudo de plástico? Sem problema, já surgiu o canudo de aço e o de silicone (embrulhados em plástico). Imprimir papel contribui para o desmatamento? Sem problema, você pode optar por receber sua fatura de cartão de crédito em papel reciclado (que precisa de muito mais água e eletricidade para ser produzido). O capitalismo vai encontrar uma maneira de gerar lucro em meio à crise e o espaço logo se torna uma saída viável para elas.
Nosso planeta nos fez. Nossos corpos, falhos e desengonçados, foram moldados para a sobrevivência neste planeta aqui e em nenhum outro lugar. Sem a gravidade da Terra, nosso corpo já começa a sofrer as consequências. Da água no labirinto do nosso ouvido, ao pH do nosso sangue, ao DNA que dividimos com todos os animais e, pasme, com plantas, a Terra é o lugar ideal para a nossa sobrevivência. Não vamos encontrar uma segunda Terra, essa é única e estamos consumindo e vivendo nossas vidas como se ela fosse infinita ou como se uma segunda Terra estivesse logo ao alcance, como Rhea.
O ambiente já está reagindo de maneira violenta às agressões humanas. E não há mais nada a se fazer agora que as mudanças se instalaram a não ser sobreviver a elas, pois não temos para onde ir nem como revertê-las. Infelizmente a população pobre e vulnerável é a que vai sofrer mais. E ainda que fosse possível construir uma estação espacial ou várias ao redor do planeta, você já sabe que quem teria condições para ir não seríamos nós, mas sim os muito ricos e muito poderosos, tal como em Elysium. Se eles precisassem de empregados, aí sim talvez eles construíssem estação superlotadas e precárias como a de Cargo. Transportar nossos meios de vida e sociedade para outro lugar não garante que esses modos serão diferentes.
Quem ficar esperando que as empresas se tornem ambientalmente responsáveis pelo bem do planeta e das pessoas, vai esperar muito tempo, pois até o colapso faz alguém ganhar. E sabe o que é pior? Não consigo ver como isso vai mudar se apenas a população, magicamente, mudar seus meios de consumo. O colapso do filme pode até parecer extremo, mas muitos também achavam que era extremo pensar em uma mudança climática global. A mudança de mentalidade teria que acontecer a tempo de mitigar as consequências do colapso ambiental e da emergência climática. Vamos nos adaptar, como sempre, mas não consigo ver saída para a situação em que entramos enquanto raça humana e sociedade.
Até mais.
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