O que é silkpunk?

A literatura está em constante transformação e renovação. Novos subgêneros surgem de tempos em tempos, com novas maneiras de contar histórias e de atrair o público. Nem todos gostam da mudança, basta ver o que uma ala reaça e preconceituosa fez com o Hugo Awards em 2015. Derivando diretamente do cyberpunk, o escritor Ken Liu designou o silkpunk.

Arte de Yuko Shimizu
Arte de Yuko Shimizu



Eu costumo colocar a ficção científica debaixo de um grande guarda-chuva chamado de ficção especulativa. Não é um termo que muitos autores gostam, mas acho melhor do que ficção fantástica, que pode confundir com fantasia. Debaixo da ficção especulativa nós temos a ficção científica, a fantasia e o terror e todos os seus subgêneros. E não podemos esquecer que os gêneros também são permeáveis, havendo mistura de um com o outro.

Ken Liu, tradutor e escritor norte-americano nascido na China, escreveu o primeiro trabalho dentro do silkpunk, uma fantasia épica composta por três livros, chamada The Dandelion Dynasty. Alguns autores discordam que essa série tenha iniciado o sub-gênero, mas a maioria concorda que a criação do termo compete a Liu. O silkpunk é um derivado do cyberpunk e está lado a lado de outros sub-gêneros como o dieselpunk, o steampunk. A figura abaixo mostra melhor a relação, ainda que estejam faltando alguns.

diagrama mostrando o gênero cyberpunk e seus derivados embaixo, incluindo o silkpunk

Segundo o próprio Liu, o silkpunk é uma junção entre ficção científica e fantasia, transitando entre os gêneros. Enquanto o steampunk emprega um ar cromado e vitoriano, o silkpunk tem inspiração na antiguidade clássica do Leste Asiático. A tecnologia tem como base materiais orgânicos tipicamente asiáticos, como a seda (daí o nome), papel, bambu, e também típicos da região do Pacífico, como penas, corais e coco.

São dirigíveis e balões feitos de bambu, caravelas a vapor com velas feitas de seda, estruturas residenciais de bambu, deuses e livros mágicos típicos de culturas da região. Os enredos são baseados na resiliência e flexibilidade do povo da região, principalmente dos arquipélagos, mas não só isso, são enredos que os colocam como protagonistas, muitas vezes reconstruindo impérios da Antiguidade com uma roupagem moderna e de tecnologia avançada. A arte não está separada da vida cotidiana nesses enredos, com seus rituais intrinsecamente entrelaçados na tecnologia.

O que acho mais legal do silkpunk é a maneira de mexer com o orgânico, a tecnologia e a magia, sem perder a identidade, tampouco satirizar o povo asiático. A cultura ocidental tem uma longa tradição preconceituosa com tudo o que vem do oriente. Selvagens, incultos, menos inteligentes, caricatos, exóticos e perigosos, é assim que muitas vezes ainda são retratados. O cinema, por exemplo, eternizou a figura da "Dragon Lady" com atrizes chinesas sensuais e perigosas. E muitos autores brancos acabam repetindo os estereótipos por ignorância, desconhecimento, ou ambos.

Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, houve casos de soldados norte-americanos levando crânios de soldados japoneses para casa como suvenir, além dos campos de concentração para milhares de americanos que por acaso tinham ascendência japonesa, panfletos com caricaturas e mitos sendo espalhados. Nem podemos esquecer de atores brancos fazendo papeis de asiáticos, negros, indígenas, indianos, além da apropriação cultural de símbolos.

Alguns autores, como J.Y. Yang, apenas começaram a escrever uma história. Só queriam contar uma boa história e depois seus trabalhos foram categorizados como silkpunk. Conforme mais e mais autores que não sejam brancos e ocidentais ganham voz e espaço entre a comunidade literária, melhor a representação de povos historicamente impossibilitados de exercerem seu protagonismo. Com personagens que fogem do padrão branco ocidental e hetero, esses autores estão expandindo os limites do gênero, ao mesmo tempo que criticam fortemente o colonialismo e sua herança.

Quando O Problema dos Três Corpos foi publicado nos Estados Unidos, com tradução de Ken Liu, vários leitores ficaram genuinamente surpresos com os temas trabalhados pelo autor. A China teve um tumultuado século XX e não tem como isso não ser refletido na escrita e na cultura em geral e para muitos norte-americanos, acostumados com o protagonismo que sempre tiveram, foi uma surpresa se deparar com uma FC entrelaçada à Revolução Cultural chinesa e invasões alienígenas. Se você não der voz às pessoas, nunca poderá conhecê-las.

Todos temos uma história para contar. Com a internet e as plataformas de publicação, além das redes sociais, está mais fácil alcançar o público que, de maneira tradicional, estaria carente de bons livros e autores. Hopepunk, silkpunk, vários sub-gêneros estão surgindo, enriquecendo a ficção especulativa e dando vozes e espaço a quem antes não os tinha.

Infelizmente, em português, não temos exemplos de silkpunk, algo que espero que mude logo. Se você lê em inglês, uma ótima sugestão é a trilogia de Ken Liu, The Dandelion Dynasty e a série de J.Y. Yang, Tensorate, que inclusive tem capas lindíssimas de Yuko Shimizu. No Goodreads tem uma lista supimpa com outras indicações.

Até mais!


Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Procurei o Ken Liu, e encontrei contos dele.
    Obrigado pela indicação do autor! Gostei muito

    ResponderExcluir
  2. Que cada vez mais haja espaço para manifestações literárias e culturais além de EUA e Europa! Depois de uma era não tão remota em que se viu estereótipos repetidos à exaustão rebaixando tudo o que não fosse branco e "americano", ter acesso a outras manifestações como estas são realmente um sopro de ar fresco (e uma grande banana a quem ainda não consegue ver cultura e literatura de qualidade fora da caixinha de sempre).
    Destes gêneros acima apresentados, eu conhecia apenas CyberPunk e SteamPunk, foi bom saber que há mais denominações.
    Abraços e boa semana!

    ResponderExcluir
  3. A descrição lembra um pouco a série “Into The Badlands”.

    ResponderExcluir
  4. Os livros da saga Tensorate estão com precinhos bacanas no Kindle, um verdadeiro milagre! Peguei o primeiro pra ver.

    PS: tenho uma exigência a fazer. Por favor, conversa com o pessoal e tentem voltar a gravar o "Holodeck". Faz muita falta esse podcast! :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Deixe comentários lá no Holodeck, eu não posso reclamar mais do que já reclamei.

      Excluir

Postar um comentário

ANTES DE COMENTAR:

Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.

O mesmo vale para comentários:

- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.

A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.

Form for Contact Page (Do not remove)