Resenha: O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu

O ganhador do Hugo Awards de 2015 nos traz um livro denso e crítico, cujo pano de fundo é a Revolução Cultural na China e primeiro livro de uma trilogia de sucesso. O livro nos traz muita ciência e personagens que estão em conflito. E claro, um jogo online chamado Três Corpos.

Este livro foi uma cortesia da Suma de Letras

O livro
O livro de Liu tem narrativas intercaladas, indo e voltando no passado recente da China sob o ponto de vista de dois personagens. Um é Wang Miao, um cientista chinês da área de nanotecnologia, na época atual; o outro é a astrofísica Ye Wenjie, cuja família foi destroçada pela Revolução Cultural, em 1966 e cujas ações são definitivas para a trama se desenvolver. A história dos dois acaba por se juntar em um dado momento, mas é com a perspectiva da jovem Ye que o livro começa, quando caos estabelecido pela revolução se instaurou, escolas e universidades foram fechadas e seu pai foi denunciado pela própria esposa e mãe de Ye.

Resenha: O Problema dos Três Corpos, de Cixin Liu

O mistério começa um dia, em uma tarde de fotos. Em um determinado momento, Wang Miao, que é fotógrafo amador, está tirando fotos e volta ao seu apartamento para revelar. Ele então nota uma estranha contagem regressiva no canto de todas as fotos. E pior, somente nas fotos que tira, pois sua esposa e seu filho tiraram fotos e nada aconteceu. Em seguida, a contagem regressiva aparece em seus olhos. Não interessa para onde Miao olha, a contagem está lá. É na tentativa de entender o que essa contagem quer dizer que ele acaba indo para o jogo online Três Corpos.

Três Corpos é um jogo peculiar, com visual deslumbrante e figuras da história da ciência como Newton e Einstein. Dentro do jogo, o povo vive entre eras caóticas e eras estáveis. Nas era caóticas, a incidência de luz solar era tamanha que os habitantes do jogo precisavam se desidratar e ser armazenados em grandes silos para quando as eras estáveis chegassem. O objetivo do jogo é tentar prever as eras estáveis com certa antecedência.

Quando um cientista morre, ele é substituído por outro. Mas se os pensamentos se confundem, a ciência acaba.

Enquanto acompanhamos a jornada de Miao no jogo, acompanhamos a vida de Ye ao longo das décadas. Depois de anos de trabalho duro e longe da universidade, um artigo de sua época de pós-graduação a levou para a Base Costa Vermelha, um tipo de projeto SETI chinês. O trabalho lá é ultrassecreto e as atividades "subversivas" de seu pai pesam sobre as liberdades que Ye têm na base, mas ela se sente grata de poder voltar a trabalhar com astrofísica.

Em meio às pesadas explicações científicas, que no entanto são compreensíveis, Cixin Liu pincela críticas à política e sociedade chinesas. Um leitor mais desatento poderia até passar por elas e não perceber, mas estão lá. Ye Wenjie, de longe a personagem mais interessante e completa do livro, carrega uma amargura e pessimismo que derivam diretamente dos efeitos da Revolução Cultural e tudo o que lhe foi feito e feito ao pai. Sua relação com sua mãe não melhora, mesmo depois de tantos anos e Ye parte em busca das pessoas que condenaram e executaram seu pai na tentativa de entender o mundo e até mesmo suas próprias emoções. Essa amargura é definitiva para os eventos do livro que ocorrem na Base Costa Vermelha e, obviamente, não posso mais falar a respeito.

Várias explicações e notas de rodapé enriquecem a leitura, sobre certas expressões e significados que vamos lendo. Por exemplo, um experimento na Base Costa Vermelha é impedido de acontecer, onde eles apontariam uma antena para o Sol e transmitiriam uma mensagem, porque o presidente Mao Tsé Tung era identificado como o "Sol Vermelho", especialmente nos anos da Revolução Cultural e isso seria uma afronta. Usar certos termos, como "manchas solares" também são proibidos, já que o termo em chinês para elas quer dizer, literalmente, "manchas solares pretas" e preto era a cor dos contrarrevolucionários. São várias as vezes que Liu aponta fatos como esse, do ponto de vista de Ye, e percebemos o quanto ela acha tudo isso uma grande idiotice.

Manchas solares

Enquanto Cixin discorre com competência a respeito da física e astrofísica que conduzem o problema dos três corpos, ele falha na representação dos personagens, com exceção de Ye Wenjie. Não sei se a intenção era essa ou se ele não percebeu que a maioria de seus personagens são vazios e caricatos, a começar de Wang Miao. Ele é vazio, sem muita personalidade, não serve como protagonista de um enredo desses. Aliás, muitos personagens são exagerados. Wang Miao é exageradamente vazio, o policial Shi Qiang é exageradamente irônico, Shen Yufei é exageradamente fechada. Me pareceu que o autor não quis desenvolver esses personagens para que o leitor preenchesse o resto, mas não dá. Somente Ye tem toda aquela complexidade maravilhosa dos bons personagens.

Assim que comecei a ler o livro, senti uma diferença grande quando comparada com a literatura que costumo ler. A estrutura narrativa, a ação dos personagens, me fizeram dar uma desacelerada e, às vezes, até voltar ao mesmo parágrafo para ler novamente. Acredito ser a estrutura narrativa do idioma chinês, porque um conto de Cixin Liu, chamado The Wandering Earth é igual. E é notável a diferença entre uma obra em inglês, por exemplo. A edição da Suma está bem acabada, com poucos erros de digitação e foi traduzida do inglês, não do chinês. E espero que ela traduza a trilogia inteira, que já foi lançada em chinês e inglês.

Obra e realidade
O grande evento do livro não seria possível sem o caos da Revolução Cultural na China. Sem ele e sem o que aconteceu na vida de Ye, os eventos que se sucedem na Base Costa Vermelha não teriam acontecido. Não dá para separar a política do livro, pois é ela a ignição da coisa toda. Quem alega que ficção científica deve ser apolítica (tipo os Puppies) entende pouco da mesma.

O mais legal do livro é poder sair do eixo Estados Unidos - Europa. A diferença é palpável, mas não afasta o leitor. Sair do lugar comum é o que norteia a ficção científica e O Problema dos Três Corpos é um excelente exemplo de uma produção rica, criativa e recheada de ciência. A narrativa do autor pode causar estranhamento sim, não nego, mas é uma questão de costume, de apreciar cada palavra e viajar pela física.

Cixin Liu

Cixin Liu é um escritor chinês de ficção científica. Se tornou o primeiro asiático a ganhar o Prêmio Hugo pelo livro O Problema dos Três Corpos.

Pontos positivos
Três corpos
Ye Wenjie
Análise histórica e social
Pontos negativos
Leitura flui devagar
Confusão em algumas partes
Poucos dados sobre outros personagens

Título: O Problema dos Três Corpos
Título original: 三体 (em inglês The Three Body Problem)
1. O Problema dos Três Corpos
2. A Floresta Sombria
3. O Fim da Morte
Autor: Cixin Liu
Tradutor: Leonardo Alves
Editora: Suma de Letras
Páginas: 320
Ano de lançamento: 2016
Onde comprar: na Amazon

Avaliação do MS?
Se você se sentiu intimidado pelo livro, vá em frente, supere a intimidação, leia com calma e embarque na física e astrofísica que recheiam a obra. Mesmo com problemas na construção dos personagens, que me pareceram muito caricatos, com exceção de Ye Wenjie (maravilhosa), eu mal vejo a hora de poder ler os próximos volumes. Quatro aliens para os três corpos e uma forte recomendação para você ler também.


Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Como eu estava ansioso por essa resenha!

    Parabéns, Lady Sybylla é uma ótima resenha!

    Eu estava com medo de comprar o livro e me decepcionar com a história, e apesar dos defeitos apontados por você os argumentos da sua resenha me convenceram a lê-lo agora! Obrigado! :)

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  2. Esse livro é muito bom, e o próximo (Floresta) achei melhor ainda.

    De fato a narrativa é um pouco diferente, e em ambos os livros há muitos (MAS MUITOS) diálogos que são debates científicos, filosóficos, etc.
    Quase todo livro/filme tem esse tipo de debate hora ou outra, para explicar uma premissa uma atitude, mas o sr. Liu basicamente leva o livro nisso! Acho que é isso que espanta... E por isso os personagens parecem vazios, todos parecem professores dando aula haha

    Tirando a Ye, que não só é a melhor personagem dos dois livros, como a parte de sua história, em torno da Revolução Cultural tem uma escrita, impacto, força e emoções diferentes de todo restante dos livros. Não sei se ele mudou de rumo no meio do livro, ou quis colocar isso discretamente para não chamar atenção do governo... A parte dela é como se fosse um conto, dentro de um outro livro.

    Bem, achei que a ciência é tão bem descrita que até parece verdade, mesmo o que é invenção do autor, rsrs. Até dei uma estudada aqui em física quantica para saber até onde era realidade, projeção, e ficção rsrs

    Queria que todo mundo que eu conheço lesse esses dois livros, marcássemos um bar, para podermos ficar horas e horas debatendo! haha
    Principalmente sobre as contradições do livro!!

    (Mas não consegui convencer ninguém a ler, droga)

    ps: cadê o terceiro? onde tem abaixo assinado para que a tradução saia logo???

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  3. Então...
    Não vou falar de como o livro é bom, ou como a resenha é bem escrita.
    Quero falar algo mais intimista.
    A Lady Sybylla sempre falou:
    Leiam autores diferentes do clássicos, mas não caiam na armadilha de ir para o padrão homem branco hemisfério ocidental.
    Sempre me prometi "vou ler", mas nunca o fazia...
    Bem foi essa resenha que me motivou a tomar vergonha na cara e ler o primeiro autor não ocidental de ficção. E que boa surpresa!
    Obrigado Sybylla, que o seu trabalho aqui na Momentum Saga continue por muito tempo.

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  4. Terminei de ler esse livro ontem. Fiquei impactado com a narrativa grandiosa. Ao mesmo tempo, compactuo com sua leitura. De fato, Wang Miao é inexpressivo e até a relação com sua família desaparece na trama, o que poderia ter sido um bom conflito. A criação dos sófons é uma epopeia à parte e acho que o autor ganha com a criação da sociedade trissolariana. Estou lendo agora o segundo livro e me deixando levar. Abraço!

    www.oguardiaodehistorias.com.br

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