Representatividade feminina e LGBTQ+ na Saga da Conquistadora

Poucas sagas me empolgaram tanto, me angustiaram tanto, me encantaram tanto quando a Saga da Conquistadora, da Kiersten White. Publicada no Brasil pela Plataforma 21, a trilogia não é uma distopia, mas uma revisão histórica de um conturbado período histórico, uma época em que o Império Otomano dominava boa parte do Leste Europeu. É neste mundo violento, neste caldeirão cultural, que viveu Vlad, o Empalador, voivoda (príncipe) da Valáquia. Você sabe quem é ele, pois Bram Stoker teria se inspirado na figura de Vlad para criar o conde Drácula!



Representatividade feminina na Saga da Conquistadora
As capas criadas por Alessandro "Talexi" Taini para as edições britânicas e australianas

O que Kiersten fez aqui foi transformar uma filha fictícia de Vlad em voivoda. Na versão histórica, a real, Vlad e seu irmão Radu foram feitos reféns pelo Império Otomano, mas Kiersten mudou essa versão e criou Ladislav Dracul, ou apenas Lada, filha de Vlad e irmã de Radu, de longe uma das melhores personagens femininas em livros de jovens adultos que já tive o prazer de ler. Minha jornada com Lada começou quando eu me deparei com uma lista com livros para quem curtiu o filme da Mulher-Maravilha e a primeira indicação era And I darken, de Kiersten White, que no Brasil saiu com o título de Filha das Trevas.

Daí em diante, me apaixonei pela história e sabia que tinha que continuar ao seu lado e saber o que aconteceria com Lada, com Radu, com Mehmed e com toda a política da região. Kiersten pegou um período tão violento, tão confuso para a região da Transilvânia, Valáquia e Hungria e usou como cenário para narrar uma complexa saga. Os personagens, muitos deles históricos, estão bem representados, assim como eventos, guerras e conflitos.

Lada Dracul já foge dos estereótipos das meninas lindas dos livros juvenis. Vlad ignorou a filha desde o nascimento, por ser uma menina, e sua ama, Oana, que praticamente criou Lada e Radu, pedia a Deus que Lada fosse feia, pois ela sabia qual seria o destino de uma moça bonita vinda de uma família nobre naquela região. Lada é violenta, irascível, briguenta, tudo o que seu belo irmão Radu não é. Esse contraponto dos dois, de colocar em Radu atributos que normalmente seriam atribuídos ao feminino, foi genial, pois elas não são fraquezas, ao contrário, são qualidades admiráveis e necessárias na hora certa. A relação desses dois envolve muito amor e ódio, que é algo que Lada tem de sobra.

O que Lada não compreende, ela odeia e odeia profundamente, passional em tudo, tanto no amor quanto no ódio. Ela sabe que poderia fazer muito mais pela Valáquia se fosse homem e por isso odeia o fato de ser mulher, odeia os atributos femininos, odeia qualquer feminilidade que tentam lhe atribuir. Sem nenhum discurso explicitamente feminista, a autora conseguiu trazer assuntos como violência doméstica, homofobia, dominação, opressão, usando as ações de Lada e de outras mulheres na trama. Lada acha uma bobagem que uma mulher não possa ser dona de sua própria vida e por isso abre o caminho para a sua própria com a espada. E também se ressente dos nobres da Valáquia que não conseguem fazer o mínimo para seu povo.

Lada é uma personagem determinada, inteligente, mas que não sabe lidar direito com as pessoas. Ela herdou a violência do pai e conforme vamos lendo, percebemos o quanto ela se torna cruel, ainda que tenha um amor odioso por aqueles que ama. Complexo, não? Geralmente, as personagens de livros para jovens adultos têm problemas com ações violentas como qualquer pessoa, eu ou você, teria. Muitas ficam traumatizadas e marcadas pelos atos que foram obrigadas a cometer para sobreviver, como a Katniss, em Jogos Vorazes. Mas Lada gosta da crueldade, gosta da brutalidade e não tem medo de matar para conseguir o que quer. Você não esperaria isso de uma princesa, certo?

Gostei muito da forma como Kiersten a descreveu, pois Lada não é o que os padrões de beleza chamariam de bela, mas em nenhum momento a autora a depreciou por isso. Ela sempre enalteceu suas qualidades, suas habilidades, sua brutal personalidade. Em algumas cenas em que Lada foi obrigada a se arrumar e se vestir para a corte, Lada deixa claro o quanto o vestido não lhe cai bem e como ela se sente incomodada com todo aquele protocolo. Me identifiquei várias vezes nessas passagens, pois quando eu era pequena odiava ficar parada num canto, de vestido e meia calça, enquanto os meninos brincavam e se divertiam.

Mas Kiersten não se ateve apenas à Lada. Existem outras figuras femininas brilhantes na trilogia, como Nazira. Nazira é lésbica, muçulmana e vive um amor escondido com uma mulher, que atua como sua aia para justificar porque está sempre ao lado de Nazira. Radu é gay e secretamente apaixonado por Mehmed, que manipula Radu por causa desse amor não correspondido. Enquanto Lada se recusa a se casar, Radu acaba casando com Nazira apenas pelas aparências. Ainda que não tenham atração sexual um pelo outro, eles se amam como irmãos se amariam e Radu se preocupa com a felicidade e a segurança de Nazira tanto quanto se preocuparia com Lada.

Radu tem conflitos internos a respeito de sua sexualidade (e aposto que muitos leitores se sentiriam ou se sentiram do mesmo jeito em algum momento), especialmente para o momento em que ele vivia e por ter dúvidas com relação à sua religião. Como Alá o julgaria por sua atração por homens? É Nazira quem aquieta seu coração, dizendo que o amor é a máxima mais importante para uma pessoa e que Alá pedia apenas isso. Criando uma incrível relação de companheirismo, os dois interpretam um casal na corte do sultão, enquanto secretamente seus corações pertencem a outros. E a forma como Kiersten descreveu essas paixões, essas dúvidas, esse amor foi brilhante. E eu torci muito por Radu e um bizantino que visita a corte de Mehmed, outro incrível personagem.

Lada e Radu estão ligados à figura do sultão Mehmed, figura que realmente existiu (Mehmed II, o Conquistador), pois eles foram criados juntos neste enredo. Enquanto Lada e Radu eram reféns, Mehmed era filho bastardo do sultão que chegou ao trono depois de longas maquinações políticas. E Mehmed, apesar do amor que tem pelos amigos, especialmente por Lada, manipula Radu, sabendo de seus sentimentos e assim consegue o que quer dos irmãos. Tinha horas que eu queria estapear esse sujeito por ser tão desonesto, por querer usar as pessoas daquele jeito. Foi um triângulo amoroso extremamente criativo que a autora criou. E não só isso, ela extrapola a figura tradicional de família mais pra perto do final da trilogia e eu simplesmente amei a solução dada por ela a todos os personagens.

O fundo político da região está muito bem representado. Enquanto lia, fuçava na internet em busca dos eventos e a autora conseguiu encaixar figuras históricas, batalhas, reinos e conquistas no enredo, todos eles profundamente ligados aos personagens. Se eu conhecia pouco sobre os eventos da região, os livros de Kiersten me deram uma aula de história. Até mesmo a conquista de Constantinopla e a queda do Império Bizantino estão descritos com riqueza. A autora também representou o Islã como uma religião de amor e aceitação, levando uma mensagem positiva para quem lê, já que somos inundados de desinformação e estereótipos negativos a respeito pela mídia e por grupos que nada entendem a respeito.

As resenhas dos três livros serão as próximas postagens no blog, mas se posso recomendar algo é que você deve ler a Saga da Conquistadora o quanto antes. São três livros, três personagens perfeitos. Espero que você se encante com a saga deles tanto quanto eu.

Até mais!

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