O que falta na ficção científica?

Estamos vivendo um impasse dentro do gênero da ficção científica. Seja uma crise criativa, seja uma crise financeira, seja falta de leitores, seja falta de autores competentes, há algo faltando neste que é um gênero visionário, inclusivo e que antecipou muitas inovações. O que será que está havendo?




Quem mora no Brasil tem um problema sério quando o assunto é ficção científica na literatura, pois o mercado é pequeno, os autores são poucos e muitos deles ainda conseguem ser ruins, e são poucas as editoras que se arriscam a publicar livros do gênero. Quando temos os filmes, temos muita ação e pouca ficção científica e a descaracterização quase completa dela em algumas obras.

Então, o que falta? O que está errado?

Antes que venham as pedradas - o que é comum - a intenção não é responder perguntas, apenas levantar questões pertinentes.

Representatividade
As artes em geral refletem o ser humano em variados segmentos. Seja nos relacionamentos amorosos, nos dramas de família, na guerra, é o ser humano, a sociedade e seu desenvolvimento os principais pontos abordados. A ficção científica também analisa a raça humana, porém voltada para a sua relação com a tecnologia, com a ciência e com o futuro. Isso não é novidade, certo? Mas ainda assim tem gente que luta contra essa FC inclusiva que possa discutir temas pertinentes.

Representatividade importa e muito!

O que temos de amostras de relações humanas na ficção científica são mais do mesmo. Famílias monogâmicas, com homens no poder e mulheres como acessórios ou com papéis apêndices de pouca importância. Vemos poucos casos de negros bem representados, o mesmo podemos dizer dos homossexuais, das mulheres, das pessoas trans*. Transexuais são praticamente nulos. Ser bem representado é uma parte importante na construção da imagem dos vários grupos humanos e faria o gênero se expandir ao englobar toda a humanidade no futuro que queremos. Infelizmente, como o pessoal que sequestrou o Hugo nos provou, esse é um quesito que ainda incomoda.

Criatividade
Se a dormência do gênero precisa de algo urgentemente, esse algo é a criatividade. Quando olhamos os lançamentos no cinema, vemos que é sempre mais do mesmo, engessado, os mesmos rostos, as mesmas lutas. Filmes com super-heróis também estão cansativos, com longas cenas de ação e destruição e só. Com o avanço da exploração espacial e com a descoberta de novos planetas o tempo todo, por que não explorar o que estes mundos têm a oferecer? Talvez seja isso que tenha irritado tanto fã quando assistiu Interestelar, que por não ter as longuíssimas cenas de ação de outros filmes de FC, acabou passando como um filme chato.

Ainda há muito que se explorar. 

Atrelado à questão da falta de representatividade em enredos, que mostram sempre os mesmos indivíduos, temos pobreza de cenários. A diversidade de planetas por aí, com diferentes características, gravidades, estrelas, tudo isso conta na hora de um autor criar seus personagens, seus ambientes. Se existem escritores trabalhando nisso, o Brasil ainda não conheceu. E nem o cinema, que se mantém na ignorância, produzindo mesmices. Se a cor de uma estrela muda, as plantas em um planeta capaz de sustentar vida também mudam. Eu não vi isso em nenhum enredo ainda. Bora criar, meu povo!

Mercado
Com o advento das tecnologias, do wifi, de drones e smartphones, parece que não faz mais sentido ler ficção científica. E assistir... bem, todos os dias têm novidades do gênero, mesmo que o cinema repita sempre o modelo distopia-invasão-super herói. No Brasil a coisa é ainda mais complicada, pois se formos a uma livraria buscar por obras, veremos os grandes clássicos do ABC da FC - Asimov, Bradbury, Clarke. Qualquer coisa fora destes nomes mais reconhecidos fica fora dos lançamentos. Até mesmo autores ganhadores de prêmios de peso, como Hugo e Nebula, não são publicados aqui. Isso resulta num círculo vicioso de leituras das mesmas coisas.

astronauta futurista
Visão de mercado é necessária.

Onde estão os livros de Octavia Butler? E a trilogia marciana de Kim Stanley Robinson? E autores mais novos, como Becky Chambers e Ramez Naam? O retorno da robótica com Daniel H. Wilson? Onde estão as escritoras? E as brasileiras que escrevem ficção científica? Pois é, me pergunto o mesmo. As poucas editoras que hoje se arriscam à publicação de livros de FC temem sair da zona de conforto em apostar em obras menos conhecidas, com medo de não haver mercado para elas. FC é um mercado de nicho, um mercado pequeno, porém fiel. Mas isso ainda parece não bastar para as editoras. O que fazer então?

Diversão
Os enredos de hoje estão preocupados em geral com uma visão apocalíptica, decadente, distópica e desgraçada da humanidade, o que deixa toda a questão da diversão, das aventuras, da conquista por mundos e de mundos utópicos incríveis relegados às antigas pulp fictions. Quem lê ou vê aos enredos hoje não vê mais os grandes cenários, as grandes aventuras interplanetárias. Vê apenas invasões alienígenas, batalhas, mais do mesmo, coisa que vem sendo repetida à exaustão há décadas, onde qualquer coisa fora da curva é sinalizada como ruim, ou como algo que veio para "destruir o gênero". Se o caso do Hugo mostrou algo é que o público está cansado do mais do mesmo.

Cenário de ficção científica
Tá faltando alguma coisa aqui...

Não sou contra distopias, nem visões pós-apocalípticas. Mas Star Trek nos provou que é possível construir grandes enredos e batalhas espaciais fazendo duas coisas: representando bem a humanidade e tendo visão otimista do futuro da nossa espécie com bastante ousadia, o que nos leva ao tópico seguinte.

Otimismo
No cinema, as obras são um desastre completo. Desastre no sentido de como tratam o ser humano e a civilização. Não há uma visão boa sobre o que vai acontecer com a humanidade, existem visões desastrosas o tempo todo, repetindo o mesmo clichê destrutivo. Aliens invadindo, super heróis quebrando o pau no centro de grandes cidades. O ser humano é capaz de resolver problemas, devemos acreditar que um mundo melhor possa ser moldado e em partes aplicado, então por que não vemos isso? Porque a velha fórmula dá dinheiro. A velha fórmula ainda lota salas de cinema.

Distopia
Chega de distopias.

Existe uma geração de autores mais velhos de FC que nasceu em um mundo dominado pela Guerra Fria, pela iminência de um desastre nuclear e isso pode ter refletido em seus roteiros e livros, mas isso já passou. Inovação é sempre bem vinda, especialmente na ficção científica. O foco deve ser a raça humana saindo de situações difíceis como um todo, como Star Trek e deixar um pouco a questão solitária do herói que salva o mundo de lado para vermos o conjunto.

Interesse em ciência
Para uma sociedade que desacredita o feito de enviar o Curiosity para Marte, que não entende a Teoria da Evolução, não é de se estranhar que não se tenha interesse em ciência. Bem ou mal, as pessoas associam à ficção científica aquela ciência pura, experimental, complicada. Sabemos que não é bem assim, mas foi assim que chegou ao imaginário das pessoas e isso gera preconceito com as obras. Ninguém precisa ter doutorado para ler Isaac Asimov, por exemplo. É possível popularizar a ciência, a robótica, as viagens espaciais e os motores de dobra, mas são poucos que conseguem fazer.

robô
Ciência em ficção científica? Claro!

Vemos a baixa apreciação do público para com a ciência, ainda vista aqui no Brasil como algo incompreensível e até incompatível com a vida das pessoas, demonizada por "gastar" recursos que poderiam ser usados em outras áreas, como eu tratei neste outro post. Clarke foi o mais sensato: acabem com as guerras que as nações terão dinheiro de sobra. Precisamos também formar autores. De novo, eles não precisam ter doutorado para escrever ficção científica, mas precisam ter noções básicas de princípios elementares e claro, ser criativo.

Nem toda obra precisa de longas explicações científicas para ser de FC. Vemos o sucesso estrondoso que as distopias fazem, sejam juvenis ou não, justamente por tratarem das consequências que um mundo destruído, pós-guerra ou pós apocalíptico sobre as pessoas. Novamente, as pessoas. Não podemos deixar de lado a vida dos personagens e seus pensamentos. FC também é sobre pessoas.


Estas são apenas observações com base no que tenho lido e visto por aí. Mas sabemos que o gênero pode render muito mais do que isso.

Até mais!


Domínio Público (download) - Utopias Pós-Modernas: uma leitura da trilogia marciana de Kim Stanley Robinson

Comentários

  1. Oi
    Seus post são excelentes, e as vezes tenho a sensação de que você sabe usar expressões que eu gostaria, mas que me falta a palavra adequada. Sou fascinado por ficção científica, e não faz muito tempo que "descobri" você na NET. Já li de Machado de Assis a Isaac Asimov, e hoje tento escrever um romance de ficção científica, e tenho usado, (entre outros) o seu site como base de pesquisa, inspiração e conhecimento. O seu site e lindo, suas ideias inspiradoras, seu conhecimento revelador, o que torna sua existência "imprescindível". Por favor, não pare! - Abraços de seu amigo distante, nesses tempos de comunicação tão breve. - Paulo Antonio - Barra do Garças-MT

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