Resenha: A Guerra da Papoula, de R. F. Kuang

Eu estava de olho nesse livro desde o lançamento na gringa e felizmente a Intrínseca trouxe para o Brasil. Primeiro volume da trilogia de mesmo nome, Kuang se inspirou na Segunda Guerra Sino-Japonesa, na história militar da China no século XX e na ascensão de Mao Tsé-Tung ao poder para compor um livro intrigante e um universo complexo e apaixonante.

O livro
Rin é uma garota pobre do sul do Império Nikara. Sua pele escura e seu pouco tato já lhe trouxeram problemas, principalmente com sua família adotiva, traficantes de ópio. Sem nunca ter conhecido sua família ou sua origem, Rin é só mais uma órfã de guerra de uma nação que já viu muito derramamento de sangue. Então um dia, sua família adotiva anuncia um casamento arranjado entre Rin e um homem três vezes mais velho do que ela. E Rin ainda ouve que deveria agradecer por esse casamento, pois ninguém iria querer casar com uma camponesa de pele escura como ela.

Resenha: A guerra da papoula, de R. F. Kuang

Sua única saída é prestar o Kaju, um tipo de vestibular para entrar na prestigiada Academia de Sinegard, um centro militar que forma soldados para o exército imperial. Ela força um mestre a aceitá-la como sua aluna, passa madrugadas estudando, até mesmo machucando a si mesma para não pegar no sono, lidando com o desdém da família adotiva e com a perspectiva horrível de um casamento. E eis que quando o resultado sai, Rin tirou a maior nota do vilarejo. Até tentaram acusá-la de colar na prova, mas não podiam mais impedi-la de ir.

O mundo de Rin é bastante cruel e a autora deixa isso transparecer com frequência. Há relatos de estupro, de agressões, cenas de violência extrema, uso de drogas, tortura física e psicológica e deixo aqui o aviso de gatilho. Também saliento que isso tudo faz parte deste universo, não há nada gratuito ou fora de contexto e os relatos são sempre do ponto de vista das vítimas. Mas são cenas que podem incomodar, por isso fica aí o aviso.

Grandes perigos estão sempre associados a grandes poderes.

Rin é uma personagem complicada e teimosa, tanto que às vezes tudo o que você quer é sacudir a garota e ver se entra algum bom senso naquela cabeça. Por outro lado, ela sofre preconceito por conta da cor da pele, já que no norte todos têm a pele branca porcelanada, e pelo fato de vir do sul, que é conhecido por ser pobre e subdesenvolvido. E a coisa piora com os professores, principalmente o da arte da luta que a expulsa da turma e a impede de aprender uma das disciplinas mais importantes. Rin achava que chegar a Sinegard era um desafio, mas permanecer na academia era outro ainda maior.

Admito que até aqui eu achava que a autora seguiria um roteiro bem determinado, de mostrar a jovem na academia, aprendendo, superando os desafios, encantando os professores, paquerando, quem sabe se enfiando em um triângulo amoroso. Mas a autora não seguiu esse caminho, o que me agradou imensamente. Kuang nos apresenta a uma protagonista que pode ser intragável às vezes, amarga e que acaba desenvolvendo um desejo de vingança conforme os eventos vão se desenvolvendo. O Império Nikara já viu duas Guerras da Papoula e pode ver uma terceira, o que vai sacudir o mundo de Rin de maneira irreversível.

O elenco de personagens secundários também é grande, mas alguns nomes se destacam como Kitay, o único amigo de Rin em Sinegard, Nezha, um estudante oriundo de uma nobre família rica que a humilha sempre que pode, e Altan, um campeão de Sinegard, admirado por todos, até mesmo por Rin. Um dos personagens que mais gostei foi Jiang, o excêntrico professor de Folclore, que de início parece só um velho louco, mas que se mostra essencial para o desenvolvimento de Rin. Algumas das melhores cenas são entre o mestre e sua aluna e a impaciência da garota com as coisas que ainda não consegue entender.

Vocês sempre acham que estão destinados a algo, seja tragédia ou grandeza. O destino é um mito. O destino é o único mito. Os deus não fazem escolhas. São vocês que escolhem.

Gostei muito da forma como a autora entrou com os aspectos fantásticos, como deuses e criaturas. Nada é explicado como sendo mágico logo de cara apenas "porque sim". Inicialmente é tudo bem terreno, bem cru e realista. Os aspectos mitológicos de Nikara e das nações ao redor são inseridos de maneira bem natural. E mesmo quando estão sendo discutidos, existe todo um método e uma explicação sobre como ou porque alcançar os deuses. E é um caminho bastante complicado. Estes não são deuses fáceis de lidar.

A autora deixou várias perguntas em aberto para um próximo volume e estou bem curiosa para ler, mas senti a narrativa da autora um pouco cansativa em alguns momentos. Para quem curte diálogos longos vai encontrar um prato cheio aqui, mas houve parágrafos em que a autora parecia não saber como descrever as coisas, então ela colocava longos blocos de diálogos para compensar. Quem esperar uma narrativa mais contemplativa, que mostre e não conte, vai acabar se decepcionando. As cenas de ação, por sua vez, compensam bastante.

O livro está dividido em três partes e está, em geral, bem diagramado e revisado, ainda que tenha um ou outro problema de revisão da tradução, que foi de Ulisses Teixeira.

Obra e realidade
Uma das inspirações para o livro foi o Massacre de Nanquim. Também conhecido como o Estupro de Nanquim, foi um assassinato em massa e estupros em massa cometidos por tropas do Império do Japão contra a cidade de Nanquim, na China, durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, na Segunda Guerra Mundial. Na época, Nanquim era a capital chinesa e o massacre ocorreu ao longo de seis semanas em 1937. Estima-se que entre 40.000 a 300.000 pessoas foram mortas. A forma como Kuang descreveu um massacre similar nos dá uma ideia de como o povo chinês ainda não se curou dessa ferida.

Rin também sofre preconceito devido à pele escura. Várias vezes seus colegas comentam sobre sua pele, como ela parece caipira e deslocada na capital do Império Nikara. Existe um preconceito dentro do próprio país com chineses de pele mais escura. Não apenas com chineses cuja etnia é mais próxima da Mongólia, como também é uma questão social, já que apenas trabalhadores braçais possuem pela escura pela exposição ao sol. Rin é obrigada a ouvir tudo isso e ainda lutar contra o preconceito dos colegas.

A autora comentou em uma entrevista sobre algumas mensagens de leitores que nunca ouviram falar no Massacre de Nanquim. Eu mesma nunca aprendi isso na escola ou na faculdade. Esses leitores sabem sobre o Dia D, mas dificilmente leriam a respeito de um massacre ocorrido na China. Só por levar a discussão aos leitores, por falar sobre a violência nas guerras e sobre traumas em seu povo o livro já vale muito.

R. F. Kuang

Rebecca F. Kuang é uma escritora de fantasia sino-americana.

Pontos positivos
Rin e Jian
Bem escrito
Universo grande e bem construído
Pontos negativos

Gatilho para estupro e violência
Pode ser devagar


Título: A Guerra da Papoula
Título original em inglês: The Poppy War
1. A Guerra da Papoula
2. A República do Dragão
3. A deusa em chamas
Autora: R. F. Kuang
Tradutor: Ulisses Teixeira
Editora: Intrínseca
Páginas: 512
Ano de lançamento: 2022
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Considerado uma das 100 melhores fantasias de todos os tempos pela revista Time, A Guerra da Papoula é uma grande obra de fantasia. Com várias perguntas em aberto, um cenário grandioso e um enredo poderoso, é uma obra de fantasia que vai fisgar até os leitores mais exigentes. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais! 🌙

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Comentários

  1. Legal, quando soube do livro e vi que seguia a linha academia, fiquei um pouco ressabiado. Mas, ao ver que vi e disse o não é mais do mesmo, vou tentar ler.

    Tenho visto mtos de magia e fic científica com o molde "acDwmia". Existe algum do ponto de vista do professor, e não do aluno? Rsrs

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    Respostas
    1. Não muito. Temos alguns pontos de vista da parte do professor de folclore. Mas mesmo os pontos de vista de Rin são bastante distantes do cotidiano de Sinegard, por isso que a narrativa é tão rica.

      Excluir

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