Resenha: A deusa em chamas, de R. F. Kuang

Uma das minhas sagas favoritas de todos os tempos chegou ao fim! O último livro da trilogia saiu agora no final do ano e finaliza uma jornada intensa, repleta de personagens complexos e poderosos. A deusa em chamas não terá dó de ninguém que chegar até seu final e muitas questões ficarão em aberto, para o desagrado de muita gente (inclusive eu). Esta resenha pode conter spoilers dos livros anteriores!

O livro
Após o final bombástico do segundo livro, Rin perdeu não apenas sua mão direita, como também seu orgulho, sua confiança na república e a amizade de Nezha. Podendo contar com poucas pessoas na vida, ela foge, buscando aliados, de forma a proteger o sul de Nikan e tentar erguer uma frente que se oponha aos hesperianos, que agora dominam boa parte do país. Tecnicamente superiores, eles acreditam que o xamanismo é uma demonstração de caos e deve ser corrigida aos olhos do Arquiteto Divino. Rin está prestes a mostrar esse caos para eles e todo mundo que se colocar em seu caminho.

Resenha: A deusa em chamas, de R. F. Kuang

Não é apenas sobre o inimigo. É sobre como o mundo vai se parecer quando tudo acabar.

Rin tem uma deusa ao seu lado, a furiosa Fênix, mas precisa de um exército capaz de resistir às poderosas máquinas dos hesperianos. Suas táticas de guerrilha podem funcionar no meio rural, mas para lutar nas cidades dominadas pela República ela precisará de bem mais que suas chamas e sua ira. Com a ajuda de Kitay, que é sua âncora, Rin queima vilas inteiras, reféns, tudo o que estiver à sua frente. E o pior, ela começa a gostar da matança.

A autora consegue nos fazer sentir esse desespero de Rin em manter tropas e aliados ao seu lado. Ela consegue mostrar o desespero da população civil que não tem o que comer, que precisa muitas vezes se aliar aos inimigos para poder sobreviver. Várias vezes a autora discute essa imoralidade da guerra, quem é culpado e quem não é. Aliás, quem pode julgar quando não se tem o que comer, quando as doenças e a miséria estão do lado de fora por causa de um conflito que você não entende? Essa visão da vida miserável que as pessoas estão levando, até mesmo o exército que Rin está tentando formar, são bem impactantes e se apresentam ao longo da leitura.

Mas conforme a leitura ia passando eu percebia o quanto a autora perdeu o controle da narrativa. Muitas perguntas ficam sem respostas e não é por querer nos fazer pensar e debater a futilidade da guerra, que é uma ótima discussão no livro, mas porque ela não parecia saber o que fazer com todo aquele grande universo que criou. A trindade, por exemplo, tem um destaque imenso neste começo do livro para no meio dele desaparecer de uma maneira imbecil. Não tem outra palavra para descrever seres tão poderosos sendo lançados para escanteio com tamanha frivolidade. Apenas não faz sentido.

A jornada de Rin até o final bombástico da trilogia é muito interessante. É uma personagem intensa, que merecia muito mais do que a vida lhe deu e tentou fazer dela algo que valesse à pena. Mas foi traída e esquecida, deixada de lado, por tantas vezes que é até natural que um lado rancoroso seu acabe surgindo. Ela se torna um anti-heroína com um poder desmedido e acho que o final dela neste livro se tornou inevitável depois de tanta coisa que ela passou. Ao mesmo tempo, sinto que a autora não nos deu respostas suficientes para nada, inclusive sobre seu passado ou sobre pessoas de seu convívio que apenas desaparecem do nada.

Nezha é um personagem bastante influente na vida de Rin e se torna sua principal oposição neste livro. Mas infelizmente também não temos respostas para muitas das perguntas que a autora deixa em aberto sobre ele. Até entendo o final dele, mas sua jornada carecia de explicação. Como boa parte da ação se passa na cabeça de Rin, até poderíamos pensar que ela não teria como nos mostrar Nezha, mas Kuang apresenta vários capítulos na visão de outros personagens e praticamente só dedicou um deles a Nezha. Sem contar o tempo que ela perde com coisas que já tinham sido ditas e que poderiam abrir espaço para outras.

O xamanismo, que era uma figura tão presente no segundo livro, é tratado com um desdém irritante pela autora. Em um determinado momento, Rin usa a habilidade de três xamãs e eles mal têm tempo de aparecer na narrativa! Há eventos que se desenvolvem do nada, como uma mítica batalha em Arlong que não vemos e muito tempo perdido com as desconfianças de Rin que olha... E assim, acho que a intenção de Kuang era mostrar o quanto Rin estava despreparada para governar, mas ela exagerou na dose e não foi pouco.

O ódio era muito peculiar. Corroía suas estranhas como ácido, tensionava todos os músculos em seu corpo, fervia seu sangue a ponto de fazê-la pensar que a cabeça se partiria ao meio. Ainda assim, motivava tudo o que ela fazia.

No final, cheguei exausta até a última página. A autora rodou, rodou, rodou e acabou no mesmíssimo lugar, depois de destruir os territórios nikaras e para que? Para um término que nem chega a terminar nada. Depois de tantas discussões sobre colonialismo e o terror de uma ocupação estrangeira, o livro acabou daquela maneira? Sinto muito, não dá para concordar com isso. Ainda acredito que o saldo inteiro da trilogia é muito bom, principalmente pelo segundo livro, mas quem quiser respostas para uma série de perguntas, bem, você não vai ter.

A edição em si está muito bonita, seguindo o padrão das anteriores. A tradução ficou nas mãos de Helen Pandolfi e Karine Ribeiro e está ótima. Não há problemas sérios de revisão ou diagramação.

Obra e realidade
Uma das inspirações para essa saga foi o Massacre de Nanquim. Também conhecido como o Estupro de Nanquim, foi um assassinato e estupros em massa cometidos por tropas do Império do Japão contra a cidade de Nanquim, na China, durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, na Segunda Guerra Mundial. Na época, Nanquim era a capital chinesa e o massacre ocorreu ao longo de seis semanas em 1937. Estima-se que entre 40.000 a 300.000 pessoas foram mortas. A forma como Kuang descreveu um massacre similar nos dá uma ideia de como o povo chinês ainda não se curou dessa ferida. Entre 1935 e 1945, os japoneses conduziram testes cruéis com mais de 200 mil pessoas no de prisioneiros na China conhecido como Unidade 731.

Rin também sofre preconceito devido à pele escura. Várias vezes seus colegas comentam sobre sua pele, como ela parece caipira e deslocada na capital do Império Nikara. Existe um preconceito dentro do próprio país com chineses de pele mais escura. Não apenas com chineses cuja etnia é mais próxima da Mongólia, como também é uma questão social, já que apenas trabalhadores braçais possuem pela escura pela exposição ao sol. Rin é obrigada a ouvir tudo isso e ainda lutar contra o preconceito dos colegas.

A autora comentou em uma entrevista sobre algumas mensagens de leitores que nunca ouviram falar no Massacre de Nanquim. Eu mesma nunca aprendi isso na escola ou na faculdade. Esses leitores sabem sobre o Dia D, mas dificilmente leriam a respeito de um massacre ocorrido na China. Só por levar a discussão aos leitores, por falar sobre a violência nas guerras e sobre traumas em seu povo, a saga já vale muito.


R. F. Kuang

Rebecca F. Kuang é uma escritora de fantasia sino-americana.

PONTOS POSITIVOS
Rin e Kitay
Bem escrito
Universo grande e bem construído
PONTOS NEGATIVOS
Longo demais
Violência
Questões em aberto


Título: A deusa em chamas
Título original em inglês: The burning god
1. A Guerra da Papoula
2. A República do Dragão
3. A deusa em chamas
Autora: R. F. Kuang
Tradutoras: Helen Pandolfi e Karine Ribeiro
Editora: Intrínseca
Páginas: 592
Ano de lançamento: 2023
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Considerado uma das 100 melhores fantasias de todos os tempos pela revista Time, esta é uma grande obra de fantasia. Com várias perguntas em aberto, um cenário grandioso e um enredo poderoso, é uma obra de fantasia que vai fisgar até os leitores mais exigentes. O último livro, por sua vez, decepciona quando comparamos aos dois primeiros e a tudo o que vivemos neles. Três aliens para o livro.


Até mais! ⚔️

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Nossa, eu fiquei muito chateado com esse livro. A saga estava indo tão bem, mas no meio eu comecei a me sentir enrolado haha

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  2. Não tem muito a ver, mas vi na Netflix Samurai de Olhos Azuis, e lembrei um pouco dessa saga. Talvez a construção da protagonista, a evolução do trio principal, etc. Mas, até agora o anime não decepcionou.

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  3. Devo confessar que esse livro me deu sono. Para mim o excesso de violencia e cenas mais picantes nos livros estão estragando a literatura moderna

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