Reimaginando o cyberpunk

Tal como a Renascença ou a era Vitoriana, o cyberpunk é facilmente reconhecível. Mas é comum que o cyberpunk seja reconhecido mais por sua estética - calças de couro, neon, cidades sujas, párias segregados com modificações corporais - do que por seu significado artístico. Agora que estamos no século XXI, parcialmente situado no futuro que o próprio cyberpunk imaginava, talvez seja difícil ver onde termina a ficção e começa a realidade.

Reimaginando o cyberpunk




Resumindo bastante e deixando seu significado em uma frase bem sintética, o cyberpunk foi um repúdio a uma visão otimista da ficção científica das décadas de 1940 e 1950. Enquanto autores anteriores trabalharam com o tecno-otimismo, visualizando um futuro próspero, onde a humanidade ocupou o espaço e planetas fora do sistema solar, passou por uma revolução técnica e científica que beneficiou nossa espécie, o cyberpunk é uma resposta às complexidades do mundo ocidental. Guerra Fria, o abismo entre ricos e pobres, as grandes companhias capitalistas, revolução sexual e reivindicação por direitos civis, tudo isso gerou resposta na literatura.

O termo cyberpunk surgiu como título de um conto escrito por Bruce Bethke em 1980 e publicado em 1983 na revista Amazing Stories. Depois o termo foi cooptado por Gardner Dozois, editor da Isaac Asimov's Science Fiction Magazine e popularizado em seus editoriais nos anos seguintes. Embora muita gente reconheça Neuromancer, de William Gibson, como um expoente do cyberpunk, é o romance de 1968 de Samuel R. Delany, Nova, que é considerado um dos principais precursores do movimento cyberpunk.

Visualizando um futuro problemático, com pobreza, questões ambientais urgentes, o domínio da tecnologia sobre a força humana, o capitalismo selvagem das megacorporações, a supersaturação da mídia, o cyberpunk parece não ser mais ficção científica e sim a realidade. Se antes ele era considerado o "salvador" da ficção científica, o gênero que trouxe de volta o interesse do público, o cyberpunk parece reduzido apenas a uma estética cool, agora que o tempo nos alcançou e a FC se tornou literatura contemporânea.

Em Matrix Resurrections um personagem diz algo muito interessante. Ele diz que ele é geek, que foi criado por máquinas. Enquanto a trilogia original lidava com um mundo binário bem definido, bem versus mal, máquinas versus humanos, livre arbítrio versus destino, em uma estética e temas tipicamente cyberpunks, o novo filme trabalha com as complexidades atuais, com máquinas que não concordam com a Matrix trabalhando lado a lado, em paz, com os humanos.

Ao invés de um mundo binário, Resurrections trouxe muitos tons de cinza que desestabilizam a visão anterior do gênero. Dependemos das máquinas. Dependemos dos celulares e da internet, algo que era ainda incipiente em 1999 quando o primeiro Matrix estreou. Temos inteligência artificial no celular e nos dispositivos como Alexa dentro de nossas casas. Qualquer criança dos dias atuais tem muito mais domínio de um smartphone do que as pessoas da minha geração. As máquinas estão em todo lugar.

Os escritores dos anos 1980 extrapolaram como seria o mundo sob o controle das megacorporações bem como a atuação do Estado, mas o que mais impressiona é que 40 anos e várias crises econômicas internacionais depois, os políticos ainda respondem às crises com soluções que priorizam os mercados sobre as pessoas em um ciclo que apenas aprofunda as desigualdades. O cyberpunk dialoga com o presente porque as condições que o inspiraram permanecem praticamente inalteradas.

Mas se um futuro específico já aconteceu, o que acontece com as histórias sobre esse futuro? Para além da estética, o cyberpunk destacava um conflito no corpo e mente humanos. Compreendendo o tecido social e a erosão das condições de vida da população, ele contraria os campos de batalha alienígenas e as grandes naves espaciais. A grande maioria dos seres humanos nunca pisou nem pisará em uma nave espacial, muito menos outro planeta. Mas cidades sujas, periferias pobres, deterioração de direitos e corporações lucrando bilhões sobre a exploração dos outros é facilmente reconhecível. O capitalismo é a verdadeira distopia.

Substitua a Tyrell Corporation pela Amazon e reformule os replicantes como “serviços essenciais” e, de repente, você tem um mundo de trabalhadores apavorados com o fato de seus empregos serem essencialmente uma sentença de morte – da ficção direto para a realidade.

Kelsey D. Atherton

Não é que o cyberpunk não seja relevante nos dias de hoje. Ele ainda é, porém ele precisa ser reimaginado, reinventado. Ao invés de ser um alerta sobre o rumo que estamos tomando, uma reflexão sobre o que nos aguardava no futuro, na verdade ele é um espelho sobre onde chegamos. O século XXI trouxe novas e diferentes obsessões em massa que talvez a antiga visão do cyberpunk não consiga acompanhar.

Um bom exemplo de como é possível resolver o paradoxo do cyberpunk é o livro A Parábola do Semeador, de Octavia Butler. A protagonista, Lauren Olamina, vive nos arredores de Los Angeles em 2024. Um presidente autoritário foi eleito, os direitos humanos foram erodidos, centros empresariais foram construídos e bairros inteiros foram destruídos e aquartelados. Lauren se prepara para sua realidade, mas vai além. Junto de sua inteligência, de sua fé, ela lidera uma comunidade rumo à liberdade e, posteriormente, às estrelas. Compreendendo que o capitalismo é a verdadeira distopia, Octavia se perguntou: o que podemos fazer sobre isso? E assim ela apontou um caminho para o gênero atual: apontar soluções à crise, não apenas sobreviver a ela.

Na literatura nenhum tema se esgota. É possível encontrar soluções para todos os temas. E o cyberpunk atual talvez precise ser repensado para caber na realidade.

Até mais!


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