The Matrix Resurrections: o grande FODA-SE de Lana Wachowski

Matrix foi um fenômeno na época de seu lançamento e tal como uma pedrinha que cai em um lago, as ondas são sentidas até hoje. Sei que muita gente não curte os filmes seguintes - Reloaded e Revolutions - mas eu amo a trilogia e como fã estava bem ansiosa para assistir ao novo longa de Lana Wachowski. E o que posso dizer a respeito é que será preciso assistir a toda a trilogia para entender este filme aqui. E que Lana se encheu de ver sua metáfora da pílula vermelha sendo usada de maneira equivocada.

Este texto pode conter spoilers da saga de Matrix!

The Matrix Resurrections: o grande FODA-SE de Lana Wachowski

Voltamos para o universo de Matrix para encontrar um Thomas Anderson amargurado, em terapia, que trabalha para uma empresa de games. Vinte anos atrás, seu jogo The Matrix, revolucionou a indústria e se tornou um marco cultural. É possível ver em sua mesa réplicas das sentinelas e da própria Trinity caindo do prédio. Este Sr. Anderson ou Neo não se parece em nada com aquele que conhecemos nos dois últimos filmes. Ele é inseguro, vive a base de medicação e tenta constantemente entrar em contato com uma mulher que ele vê em um café. Tiffany, uma mãe e esposa atarefada, cruza seu caminho constantemente, mas eles sempre são interrompidos por alguma coisa. Ela é a cara de Trinity, a personagem de seu jogo.

Enquanto isso, somos apresentados à tripulação da nave Mnemosyne. Sua capitã, Bugs, encontra um modal, um lugar onde o Sr. Anderson coloca seus personagens para se desenvolver. Ela percebe que tem algo bem estranho ao vivenciar a cena do primeiro filme, em que Trinity é surpreendida pela polícia e detona com todos os homens lá dentro, para fugir em seguida. Seu encontro com um dos agentes da Matrix nos mostra que essa versão das máquinas também é diferente daquele universo que conhecemos.

Time to fly

A trilogia Matrix lidava com binários. Ser humano versus máquina, livre arbítrio versus destino, bom versus mau, pílula vermelha versus pílula azul, zeros e uns. Tanto que Morpheus é bem específico ao dizer que se você não é um de nós, então é um deles, um dos agentes da Matrix. O novo filme despedaça essa binariedade. A não binariedade invade o filme através de diversas análises.

Em um mundo onde cada vez mais a tecnologia está a serviço da humanidade, Lana Wachowski quebra e reconstrói a relação humana com as máquinas. Quem lembra do papo do conselheiro Hamann com Neo em Matrix Reloaded lembra que ele já falava sobre a nossa dependência das máquinas e de como era complicado querer excluí-las de nossas vidas. Em Resurrections, o discurso vai além. Máquinas que não concordam com a dominação da Matrix agora apoiam a humanidade e são nossos aliados. Programas sencientes são capazes de interagir com os humanos através de nanotecnologia e há máquinas na nave trabalhando lado a lado dos tripulantes.

Se nós não sabemos o que é real, não temos como resistir. Eles pegaram a sua história, que significava tanto pra tanta gente, e transformaram em algo banal.

Capitã Bugs

A internet não era o fenômeno de hoje e celulares não eram um componente diário na vida das pessoas em 1999, nem em 2003. Mas isso mudou. Hoje - e exacerbado pelas exceções da pandemia - somos cada vez mais dependentes das máquinas. Estamos o tempo todo plugados com nossos smartphones, onde reagimos com figurinhas e gifs às piadas dos amigos, onde mandamos dinheiro para quem precisa com um simples PIX, onde nos tornamos influenciadores e formadores de opinião.

Um personagem em Resurrections diz acertadamente: sou geek, fui criado por máquinas. Hoje é possível programar a máquina de lavar roupa e de louça por apps no celular, é possível fazer compras pelo WhatsApp, se consultar com seu médico por uma videoconferência e receber produtos na sua casa em menos de 24hs. As máquinas estão em todo lugar. A principal questão do filme não é mais como derrotar as máquinas, mas sim como manter as conexões e relacionamentos que nos mantém humanos, mesmo com a presença da máquina.


O grande FODA-SE
Os reaças norte-americanos no Twitter se valem muito da filosofia da pílula vermelha, bem como grupos misóginos da internet. Mas como disse Hugo Weaving, o agente Smith da trilogia, eles são incapazes de fazer uma leitura profunda da metáfora que a pílula incorpora. Ivanka Trump e Elon Musk se apropriaram da mesma metáfora e tomaram um grande FUCK YOU de Lilly Wachowski no Twitter.

A cena da pílula incita os seres humanos a se libertarem do mundo de aparências, em aceitar uma verdade diferente e espantosa em vez de permanecer em um engano cômodo, mas alguns pegaram o conceito e o transformaram em uma fuga das frustrações da vida cotidiana, onde eles se adaptam a ideias preconcebidas e enxergam o mundo em uma estrutura que se adapte ao que eles pensam. Eles tomam uma overdose de pílulas azuis diariamente e não percebem, em uma grande câmara de ressonância que se tornaram as redes sociais e fóruns.

The Matrix Resurrections

Lana assumiu um grande risco ao trazer Matrix de volta, mas ela tem o direito de retorcer sua própria criação como bem entender. O filme trabalha com descontruções de conceitos e novas metáforas, como a perversa cena de reconstrução corporal de Neo e Trinity pelas máquinas e a obsessão da indústria com a eterna juventude, as agressões aos corpos para se fazer caber em padrões, principalmente os cisnormativos, como Lana e Lilly tão bem sabem.

O filme tem cenas que colidem entre si como pancadaria generalizada seguida de textões metafísicos que explicam como essa Matrix funciona quando comparada com a anterior. Em meio a tudo isso está um Neo perdido, sem saber mais o que é real, o que é sonho, se está alucinando ou se está sendo enganado pela grande máquina que mói e quebra gente todos os dias. Ele representa a maioria das pessoas, aquelas que não estão no topo da pirâmide, influenciadas e perdidas pelo ruído constante da Matrix que evita a elaboração de um simples pensamento.

Rostos conhecidos retornarão para este longa e terão papel importante nesse novo capítulo. Rostos novos (e bem familiares para quem assistia Sense8) interpretam a nova geração de tripulantes que navegam pela Matrix. E há uma correção mais do que merecida para a jornada de Trinity, que tanto me emputeceu em Matrix Revolutions. No mais, acho que o filme não tem a intenção de agradar ao fã médio que ama o primeiro filme (e só ele). Lana criou uma obra de arte que mandou todos aqueles que se apropriaram de sua criação À MERDA.

The Matrix Resurrections

Nos nossos tempos não é mais possível viver sem as máquinas, mas a mensagem do filme é: podemos escolher o uso que faremos delas e o quanto elas estarão presentes em nossas vidas. Não existe uma binariedade.

Já assistiu? Curte Matrix?

Até mais!

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Comentários

  1. Eu vi o filme recentemente, e vi como grandes influenciadores do meio nerd se doeram com ele. Isso mostra que a maioria, ou o mais popular tipo de pensamento é o de gente que não sacou que Matrix não é só sobre tiro porrada e bomba, é uma caminhada que tem de ser feita junto ao filme pelo espectador, onde vários se perderam por não concordar com a visão das irmãs Wachowski. Eu me senti confortável ao ver esse filme, pq Matrix já nos ensinou a assistir Matrix, já tivemos essa aula, e quem aproveitou ela e compreendeu a mensagem, teve uma bela nova surpresa. Belo texto sobre a obra!

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  2. Antes de ver esse revi toda a trilogia. Curti o filme, entendi a crítica e fiquei com vontade de ver mais daquele universo. Em termos de FC, ficou perfeito.

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  3. Um dos discursos mais bem estruturados que li sobre The Matrix Resurrections em semanas. Confesso que chego a ficar até mesmo frustrado com o tanto de gente que sequer tenta ultrapassar a camada mais superficial do "conceito" Matrix. Até entendo: se já é difícil ressignificar uma certeza pré-estabelecida, muito mais o é admitir a própria condição de massa de manobra. Muitos YouTubers e "influencers" em geral se ofenderam mesmo com a proposta do filme, afinal de contas, é o proprio propósito deles, em determinada instância, em xeque ali. Lana Wachowski foi genialmente corajosa. Vai levar pedradas para o resto de sua vida por causa desse filme, mas deu o seu recado. E eu, particularmente, lhe sou muito grato por isso. De certa forma, acordei um pouco mais.

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  4. E o interessante também, que notei neste filme, foi a quantidade de espelhos e reflexos. Tipo um alerta para a sociedade focar mais em si mesma. A realidade de hoje está toda ali e observando bem, deprime por ver uma sociedade deprimente. Lana mandou super bem.

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