Resenha: O silêncio das mulheres, de Pat Barker

Existem muitas figuras conhecidas entre os mitos gregos. Aquiles, principalmente, é sinônimo de heroísmo, de um guerreiro perfeito, um ideal de lutador que acaba por ofuscar todos aqueles ao seu redor. Mas e suas vítimas, em especial as mulheres, escravizadas e brutalizadas? E as mulheres de Troia e seus reinos, onde o grande herói lutou? O que será que elas têm a dizer? Pat Barker deu voz a uma injustiçada personagem desse conflito: Briseida.

O livro
Briseida ouviu o grito de Aquiles antes mesmo de vê-lo. Acuada com outras mulheres de Lirnesso no templo, ela sabe que é só uma questão de tempo antes que os gregos invadam e as tomem. Ela sabe que os homens estão lá fora lutando. Seu marido, seus irmãos. Sua sogra, doente demais para sair do palácio, está lá em cima, sendo cuidada, ninguém sabe até quando. Dentro do templo há somente espera. Uma espera angustiante, com odor de leite materno, cocô de criança e sangue menstrual. Elas sabem o que as aguarda. Elas sabem o que está para entrar por aquelas portas.

Resenha: O silêncio das mulheres, de Pat Barker

Quando os gregos invadem, começa a divisão de butins. Briseida é um prêmio de Aquiles, o poderoso guerreiro grego a quem tantos respeitam e temem. Briseida não tem qualquer visão romântica sobre seu captor. Ele pode não ser tão cruel quanto os outros senhores gregos, mas Briseida é uma escrava. E ela não apenas tem plena certeza disso como discute com outras escravas que acreditam possuir qualquer poder sobre seus captores. Existem várias escravas troianas no acampamento grego, um lugar que Briseida chama de "campo de estupro", porque é o que é mesmo.

E entre elas existem aquelas que engravidaram de seus senhores, aquelas que acham que eles podem acabar se casando com elas, as mulheres "velhas e feias", que sobrevivem do lixo e fazendo trabalho braçal, como lavar roupa, e aquelas como Briseida, que estão apenas tentando sobreviver.

O que pensarão de nós, o povo daqueles tempos inimaginavelmente distantes? De uma coisa eu sei: não vão querer a realidade brutal da conquista e da escravidão. Não vão querer ser informados sobre os massacres de homens e meninos, a escravidão de mulheres e garotas. Não vão querer saber que vivíamos em um campo de estupro. Não, vão preferir algo muito mais suave. Uma história de amor, talvez? Só espero que consigam entender quem era os amantes.

Ler este livro foi uma experiência brutal. Tinha momentos em que eu conseguia ler algumas poucas páginas e parava porque não dava, sabe? A autora nos preserva dos detalhes violentos dos estupros, mas há muita violência nessas páginas. É até natural, afinal estamos falando da Guerra de Troia, um conflito de 9 anos imortalizado na Ilíada. Mas a Ilíada não fala dos pormenores da vida de uma mulher, de uma escrava. A vida regradas das gregas e troianas não preenche os cantos da obra imortal. Afinal, isso não é visto como heroico. Mas Barker deu voz a Briseida sem romantizar seu relacionamento com Aquiles.

Em Minha História das Mulheres, a historiadora Michelle Perrot faz uma observação bastante precisa. Ela diz que na maioria das sociedades, o silêncio e a invisibilidade das mulheres fazem parte da ordem das coisas, é a garantia de uma cidade tranquila. Mesmo Briseida sendo a esposa do rei de Lirnesso, ela vivia segregada ao palácio, sem liberdade de sair às ruas, sem nem ao menos usar a cabeça e rosto descoberto, precisando estar sempre coberta por véus, invisível. A ironia de sua situação é que mesmo sem o véu, ela continua invisível no acampamento dos gregos. Se uma rainha era tratada assim, o que poderia esperar as lavadeiras, as mulheres mais velhas?

Barker não facilitou em nenhum momento para as leitoras. Como eu disse, não há cenas de estupros, mas não é preciso haver uma para saber o que acontece quando se é obrigada a fazer alguma coisa para os senhores que as detém. Os horrores de uma guerra, a brutal realidade das mulheres em tempos de guerra, estão bem documentadas no livro. Há descrições da sujeira, das condições fétidas da barraca dos feridos, o preparo dos corpos para a cremação, a resistência silenciosa de mulheres que sabem que não possuem qualquer poder além de orar aos deuses. Talvez o aspecto mais brutal da obra de Barker é saber que neste momento existem mulheres numa posição muito similar a de Briseida milhares de anos depois dos eventos em Troia.

Talvez ele tenha chegado ao estágio de exaustão em que tudo o que se deseja é doçura.

Briseida tem um olhar muito afiado e consegue enxergar bem tudo o que está acontecendo. A autora não deixou de fora os eventos da Ilíada, como a rixa de Agamenon e Aquiles por causa dela, a mãe de Aquiles visitando-o na praia, a obediência dos soldados para com Aquiles e Pátroclo. Mas o homem belo, corajoso, valoroso das lendas é apenas um homem de sua época. E ainda que exista um toque de magia na história, um toque que achei interessante da autora em manter, essa magia nunca atinge as mulheres. A vida das mulheres é trabalho duro e solidão. Nem Briseida tem qualquer esperança de ter um futuro melhor. Ela é árida, crua, tendo sido esvaziada de qualquer amor.

Não li o livro físico, mas sim o ebook e ele está bem diagramado e revisado, com uma ótima tradução de Lina Machado.

Obra e realidade
Muita gente deve lembrar do filme com Brad Pitt, Troia, onde Briseida (Rose Byrne) é uma sacerdotisa do templo de Apolo que ele resgata no acampamento e depois por quem se apaixona. No filme, Aquiles é um mulherengo incorrigível, que seduz a jovem virgem, mas Aquiles entregou seu coração a Pátroclo na Ilíada e no livro de Barker não é muito diferente. O relacionamento dos dois é mais do que o de dois amantes. Eles são irmãos, companheiros de batalha, confidentes, senhor e servo. Briseida acaba desenvolvendo um carinho pela gentileza de Pátroclo, um respeito que ela não consegue ter por Aquiles.

Não há romantismo algum no livro de Barker e acho que o tom adotado pela autora foi correto. Sei que existem obras, além do filme Troia, que romantizaram o relacionamento de Aquiles e Briseida, mas me sentiria ainda mais desconfortável lendo um livro desses do que lendo a obra de Barker. Romantizar abuso, escravidão e misoginia não tem nada de romântico.

Pat Barker

Pat Barker é uma escritora britânica ganhadora de vários prêmios.

Pontos positivos
Bem escrito
Briseida
Muito atual
Pontos negativos
Violência contra a mulher
Preço


Título: O silêncio das mulheres
Título original em inglês: The silence of the girls
Autora: Pat Barker
Tradutora: Lina Machado
Editora: Excelsior
Páginas: 304
Ano de lançamento: 2022
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Não vou dizer que será uma leitura fácil, porque não será. É um livro que pode não ser indicado para todas as leitoras, ainda que eu recomende muito a leitura, pois é uma personagem lendária que enfim ganhou a voz que necessitava. Depois de milhares de anos de mudez e incapacidade de se comunicar, Briseida enfim pode nos contar sua história da maneira como, provavelmente, foi. Quatro aliens para o livro e uma forte indicação para você ler também!

MUITO BOM!

Até mais!

Eu era uma escrava, e uma escrava fará qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para deixar de ser uma coisa e se tornar uma pessoa novamente.

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Comentários

  1. Li "O silêncio das mulheres" após essa resenha e simplesmente amei o livro. Um olhar completamente diferente do "herói Aquiles" e da guerra como um todo. Assim como no teu comentário, achei essencial a autora não ter romantizado as relações das mulheres escravas e de seus "donos" por mais "bondosos" que alguns pudessem ser. E acho que o mais interessante/mórbido/triste de ler foi parar pra pensar que realmente, nas guerras, as mulheres sempre estão lá em posição de escravidão e ajuda, até hoje. Obrigada pela recomendação.

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