Filhos da esperança e a pandemia

Assim que a pandemia foi declarada e talvez até mesmo antes disso, um enorme sentimento de xenofobia se elevou contra os chineses e contra os asiáticos em geral. Isso porque o vírus continua sendo chamado por muitos como o "vírus chinês" e muita desinformação e mentiras (também chamadas de fake news) se espalharam pelas redes. Para alguns, o filme Contágio (2011) foi uma "previsão" sobre a pandemia, mas se queremos olhar a parte mais suja dela, é para Filhos da Esperança que devemos olhar.

Filhos da esperança e a pandemia

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Levemente baseado no livro de mesmo nome de PD James, o filme foi lançado em 2006, com direção de Alfonso Cuarón. Apesar de não ter bombado nas bilheterias, arrancou elogios da crítica especializada e se tornou em pouco tempo um filme cult de ficção científica. No longa, que se passa em 2027, após uma pandemia, a humanidade não pode mais se reproduzir. Toda a população mundial ficou estéril e por 18 anos nenhum bebê nasceu no mundo. As economias entraram em colapso, sem gente jovem para entrar no mercado de trabalho. As religiões se metamorfosearam para tentar acalentar aqueles que nela ainda buscavam refúgio. Para muitos, não há mais sentido em produzir arte ou viver, pois em 100 anos quem estará vivo para ver?

O filme não é nem um pouco sutil nas críticas que faz. Elas estão bem escancaradas nos jornais grudados na parede, nos prédios abandonados, com pintura descascando, gente em busca de uma vida melhor na Inglaterra sendo tratada como criminosa, restrita a baias como animais e enviada para locais violentos e insalubres, com muita corrupção e sujeira. Como muitos governos incompetentes fazem, a culpa da crise foi jogada em inimigos externos e convenientes.

Pobres refugiados. Depois de escaparem das maiores atrocidades e rumarem por um longo caminho até a Inglaterra, nosso governo os caça como baratas.

Na época do lançamento do filme a imigração já era um grande problema na Europa, antes da vinda em massa de refugiados por conta da Guerra na Síria e da atuação do Daesh. Porém ninguém falava de registros para muçulmanos, nem que a Inglaterra votaria para sair da União Europeia após uma campanha focada no aumento de refugiados e imigrantes no país. Não é irônico que no meio de uma pandemia de Covid-19, o Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS), modelo no qual nosso próprio SUS foi criado, seja em grande parte sustentado por trabalhadores da saúde de outras partes da Europa?

Cuarón prezou pelo reconhecimento do público. Ele queria um filme que fosse fácil de identificar, não as extrapolações cyberpunks de Blade Runner. Nada de celulares ou internet, mantendo o filme atual e moderno até mesmo hoje, 14 anos depois. Cada vez que alguém resgata o filme que estúdios e prêmios esnobaram, Cuarón desdenha da assim chamada "previsão" de Filhos da Esperança, pois nada ali era estranho em 2006. A repressão, a violência, a imigração, o levante do fascismo, era tudo assunto corrente, mas depois de um tempo a mídia muda de assunto.

A infertilidade é apenas uma metáfora para se trabalhar como valorizamos algumas vidas e não outras, como daqueles imigrantes sendo torturados e violados, mortos e caçados como animais, enquanto grupos paramilitares disputam a guarda da única mulher grávida do mundo. Todo um combate armado sobre um prédio que abriga refugiados para ao ouvir o som de um bebê chorando. É um momento mágico do filme, onde as pessoas param a matança, alguns se benzem, outros choram, enquanto a mãe carrega seu bebezinho recém-nascido, mas o combate continua pouco depois, o milagre acabou, bora lá matar mais gente.

O interessante a se notar no fim do mundo de Cuarón é como as pessoas se habituaram a ele. Chega uma hora, dentro da distopia, que você apenas leva sua vida, como o protagonista, Theo (Clive Owen) vem fazendo antes de reencontrar a ex-esposa. Theo vive anestesiado pela dor, pela bebida e é acompanhando seus passos que descobrimos mais sobre esse mundo sombrio, sujo e corrupto que não tem nada de estranho. O medo e o desespero de um mundo sem crianças - e consequentemente sem futuro - se expressam na forma da tirania do governo.

Muitos países abominam a vinda de imigrantes ignorando o fato de que eles são uma força de trabalho para áreas que a população mais velha de seus países não ocupam. O NHS britânico é composto por enfermeiros portugueses, cirurgiões romenos, técnicos eslovenos, pois não há corpo médico suficiente para atender às necessidades da população. Destratar os imigrantes, ignorando a imensa força de trabalho, é fomentar a revolta interna, tal como vemos em Filhos da Esperança.

cena de Filhos da Esperança, com Clive Owen

A Inglaterra totalitária e fascista, que se mantém no poder moendo imigrante, não poderia reconhecer o milagre de um nascimento após 18 anos, já que ela exclui os imigrantes. É uma mensagem clara de como estamos tratando gente vulnerável e fragilizada, de como o sistema vem usando da força e do preconceito contra pessoas que poderiam contribuir para a sociedade.

E se queremos nos voltar para a ficção para analisar o momento presente, é Filhos da Esperança que traz a mensagem mais direta e cruel. É possível que tenhamos que conviver com o Covid-19 do mesmo jeito que o mundo convive com a infertilidade no longa, por um longo tempo. E se nos deixarmos anestesiar pela rotina horrível e pela realidade, vamos deixar passar o fascismo, o medo e a tirania com larga vantagem. Podemos ser melhor, devemos.

Até mais.

Leia também:
Cinema e Arquitetura em Filhos da Esperança - ArchDaily
The Recognizable Future of Children Of Men - Den of Geek
How Children of Men Became a Dystopian Masterpiece - Vulture
Why Children of Men has never been as shocking as it is now - BBC

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Comentários

  1. Maravilhosa crítica! Eu amo esse filme e sim, ele continua atual e terrivelmente semelhante à nossa realidade.
    Beijos.

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