N.K. Jemisin faz história no Hugo Awards 2018

Ansiedade na cerimonia do Hugo Awards de 2018! Depois de anos conturbados, especialmente o de 2015, quando o prêmio foi tomado de assalto por reaças supremacistas, poderíamos ter um momento histórico na cerimonia deste que é tido como uma das mais altas honrarias da FC & Fantasia. E sim, tivemos um momento histórico e de vitória sobre o ódio.

N.K. Jemisin
A maravilhosa N.K. Jemisin

N.K. Jemisin é uma escritora de ficção científica e fantasia, nascida em Iowa. Em 2016, seu livro A Quinta Estação, publicado no Brasil pela Editora Morro Branco, ganhou o Hugo Awards de Melhor Romance, tornando-a a primeira escritora negra a ganhar o Hugo nesta categoria. A continuação, O Portão do Obelisco, ganhou o Hugo em 2017 na mesma categoria. E estavam todos na expectativa para Jemisin levar o terceiro Hugo de Melhor Romance pelo terceiro livro, O Céu de Pedra e fazer história mais uma vez. E fez.

Não só isso. All Systems Red, de Martha Wells, ganhou de melhor novela, The Secret Life of Bots, de Suzanne Palmer, levou por melhor noveleta, Welcome to your Authentic Indian Experience™, de Rebecca Roanhorse, que é da nação Navajo, levou por melhor conto, World of the Five Gods, de Lois McMaster Bujold levou por melhor série, No Time to Spare: Thinking About What Matters, de Ursula K. Le Guin levou por melhor trabalho relacionado, Mulher-Maravilha levou como melhor longa, Akata Warrior, de Nnedi Okorafor levou de melhor livro de young adult e Rebecca Roanhorse levou por melhor escritora iniciante. Que noite! Veja aqui todos os ganhadores!

É óbvio que a reaçada apoiadora dos puppies sequestradores chiou com os prêmios. Eles acreditam, inclusive autores brasileiros, que existe uma agenda esquerdista, comunista, gayzista feminazi dos unicórnios satânicos que estão dando prêmios não pela qualidade das obras, mas apenas porque autoras e autores de grupos minoritários estão concorrendo. Segundo esses cabeças de vento, essas obras estão deixando de lado a "verdadeira ficção científica" e usando agendas políticas em seus livros. A diversão, a sensação de maravilhamento, tudo isso estaria perdido porque mulheres, negros, comunidade LGBTQ+, nativos americanos e pessoas com deficiência estão ganhando prêmios. Nem sei como explicar que toda obra é política, eles é que nunca perceberam.

Quem vem acompanhando os trabalhos destas autoras e autores nos últimos anos vem notando que as obras são sim incríveis. Eu tentei ler A Quinta Estação bem devagar para que o livro não acabasse. Eu devoro todo e qualquer livro do Scalzi que aparece na minha mão e Martha Wells é hoje uma das minhas escritoras favoritas com seu murderbot rabugento que adora séries de TV.

O que os puppies não entendem é que nós sempre estivemos no fandom. Sempre à margem, mas sempre estivemos aqui. Essa cisma dentro do fandom foram eles que criaram. George RR Martin, em 2015, disse que eles quebraram o Hugo Awards talvez de maneira irreparável, mas felizmente os fãs mostraram que não, ele não está quebrado. O Hugo Awards tenta mostrar a preferência do público da maneira mais fiel possível, pois são os membros pagantes da WorldCon que têm direito a indicar e votar nas obras. Não é uma comissão avaliadora como em outros prêmios e foi essa maleabilidade das indicações que fez os puppies sequestrarem o prêmio em 2015.

O mercado literário mudou nessas últimas duas décadas com o crescimento dos escritores pela internet. É possível fazer financiamento coletivo de seus livros, se autopublicar e os bons trabalhos estão sendo lidos, discutidos, levados para as universidades e grupos de leitura. Se as pessoas estão figurando entre os indicados aos grandes prêmios é porque hoje elas têm mais condições de publicar, algo que 50 anos atrás era difícil, quase impossível para muita gente. E se estão ganhando prêmios é porque esses livros são bons.

Eu não poderia estar mais feliz por este prêmio de Jemisin e de tantas outras mulheres fantásticas que foram premiadas duas noites atrás. Ninguém vai se calar e parar de produzir porque meia dúzia de trolls está revoltada. Querem ganhar prêmios? Escrevam boas obras. Mas parem de chorar e encher o saco.

Deixo aqui também o discurso de Jemisin quando subiu ao palco para receber o prêmio e a tradução feita por Isa Próspero, do blog Sem Serifa.



Este tem sido um ano difícil, não é? Alguns anos difíceis, um século difícil. Para alguns de nós, as coisas sempre foram difíceis e eu escrevi a trilogia da Terra Partida para falar dessa luta e do que é preciso para viver, que dirá prosperar, em um mundo que parece determinado a quebrar você. Um mundo de pessoas que constantemente questionam sua competência, sua relevância, sua própria existência.

Eu recebo muitas perguntas sobre de onde vêm os temas da trilogia da Terra Partida. Acho que é bem óbvio que tirei inspiração da história humana de opressão estrutural, assim como meus sentimentos sobre este momento na história americana. O que talvez seja menos óbvio é o quanto da história deriva dos meus sentimentos sobre ficção científica e fantasia. Por outro lado, ficção científica e fantasia são microcosmos do mundo mais amplo, de modo algum excluídos da mesquinharia e do preconceito do mundo.

Mas outra coisa que eu tento abordar com a trilogia da Terra Partida é que a vida num mundo difícil não é nunca apenas uma luta. A vida é família, de sangue e encontrada; a vida são aqueles aliados que se provam dignos por ações e não apenas discursos; a vida significa celebrar cada vitória, não importa quão pequena. Então, enquanto estou aqui diante de vocês, sob estas luzes, eu quero que vocês se lembrem que 2018 é também um bom ano. Este é um ano em que recordes foram estabelecidos, um ano em que mesmo os privilegiados mais cegos entre nós foram forçados a reconhecer que o mundo está quebrado e precisa de conserto, e isso é uma coisa boa, porque reconhecer o problema é o primeiro passo para consertá-lo.

Eu olho para a ficção científica e fantasia como o ímpeto aspiracional do zeitgeist. Nós criadores somos os engenheiros da possibilidade. E à medida que esse gênero finalmente, embora relutantemente, reconhece que os sonhos dos marginalizados importam e que todos nós temos um futuro, o mundo também fará isso. Em breve, espero. Muito em breve.

E sim, haverá contraditores. Eu sei que estou aqui neste palco aceitando este prêmio por basicamente o mesmo motivo que todos os vencedores de melhor romance anteriores: porque eu trabalhei para caramba. Eu verti minha dor no papel quando não podia pagar por terapia, eu estudei uma ampla gama de obras de literatura e me aprofundei nelas para aprender o que podia e refinar minha voz, eu escrevi um milhão de palavras de merda e provavelmente um milhão de palavras de "meh". E, além disso, eu sorri e acenei enquanto editores de revistas bem-intencionados me aconselharam a moderar minhas alegorias e minha raiva.

Eu não fiz isso. Eu cerrei os dentes enquanto um escritor profissional estabelecido me fez uma diatribe de 10 minutos, basicamente como uma representante de todas as pessoas negras, por mencionar a falta de representatividade nas ciências. Eu continuei escrevendo embora meu primeiro romance, The Killing Moon, tenha sido inicialmente rejeitado sob a suposição de que apenas pessoas negras jamais iriam querer ler o trabalho de uma escritora negra. Eu ergui minha voz para rebater outros convidados em mesas que tentaram falar acima de mim sobre minha própria vida. Eu lutei contra mim mesma e a vozinha dentro de mim que constantemente, e ainda, sussurra que eu devia manter a cabeça abaixada e calar a boca e deixar os escritores de verdade falarem.

Mas este é o ano em que eu posso sorrir para todos os contraditores – cada um deles, medíocres, inseguros, aspirantes, que abriram a boca para sugerir que eu não pertenço a este palco, que pessoas como eu não podem merecer tal honra, e que quando eles ganham é meritocracia, mas quando nós ganhamos é por política de identidade. Eu posso sorrir para essas pessoas e erguer um dedo enorme, brilhante, no formato de foguete na direção deles. Então, quantos de vocês viram Pantera Negra? Provavelmente, minha parte preferida é a canção tema de Kendrick Lamar, "All the Stars". O refrão diz: "Esta pode ser a noite em que meus sonhos vão me deixar saber que as estrelas estão mais próximas". Que 2018 seja o ano em que as estrelas ficaram mais próximas para todos nós. As estrelas são nossas. Obrigada.

Até mais! ♥️

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