Quando a Luana, da Morro Branco, comentou sobre este livro, fiquei imediatamente interessada. A autora é jamaicana e deu um estilo único aos diálogos em patoá de seus personagens, o que vinha se mostrando um desafio para a tradução. Mas não só isso, o livro traz muitos temas urgentes, muita discussão delicada que a ficção precisa cada vez mais como lesbofobia, prostituição, racismo, opressão e misoginia. Não é uma leitura fácil, mas é um livro que você não consegue parar de ler.
O livro
Deus num gosta di feia
Começamos o livro com Margot, que trabalha em um hotel decadente e mal administrado, onde ela espera crescer. Sabemos logo de cara que Margot se prostitui para os hóspedes do hotel de maneira a dar a melhor educação para irmã mais nova, Thandi, para que ela passe nos exames e consiga ingressar em uma universidade. Margot sabe do que os homens brancos europeus e americanos gostam e porque a querem: querem explorar o corpo de uma negra, ver seus mamilos, sua vulva, experimentar um pouco do exotismo jamaicano. Margot se desconecta do que faz porque o dinheiro é mais importante.
(...) seu cabelo é alisado e penteado em um coque bem arrumado, não há um fio fora do lugar exceto os que estão nascendo, que são assentados com gel para dar a impressão de cabelo bom; e sua maquiagem é de uma perfeição minuciosa, com pó suficiente para que ela pareça mais clara do que é; uma criada de luxo.
Página 18
Mas Margot guarda vários segredos. Conforme vamos lendo vemos que a prostituição a que se submete por causa da irmã tem um motivo e serão memórias e eventos que se desenrolarão para que a leitora entenda como que ela entrou para esta vida. Admito que tive que parar de ler quando cheguei nessa parte, respirei fundo e continuei. A escrita de Nicole é assim, ela te leva a uma leitura de profundas respirações e reflexões para assuntos que são muito próximos das mulheres, especialmente das mulheres negras cujos corpos são desumanizados e objetificados de maneira extrema e cruel.
O que senti com esta leitura no geral, depois de descobrir sobre as vidas de Margot, Delores, sua mãe e Thandi sua irmã é que os oprimidos podem acabar se tornando opressores, acreditando que a vida para elas se resume a isso: oprimir ou ser oprimida; e para não sofrer mais algumas partem para a opressão, pois assim sentem-se no controle da situação. Mas que controle é esse? Ele é ilusório, pois quando esse poder for retirado, o que será dela?
Delores é uma mãe abusiva, que também teve sua cota de abusos e por uma série de acontecimentos, aliados ao preconceito da Jamaica, acabou repetindo na filha Margot. Há um aspecto da vida de Margot onde ela não precisa se esconder, nem se submeter a ninguém, que é amando uma mulher, Verdene, que é rechaçada pela população de River Bank, em Montego Bay, o coração turístico da Jamaica. Verdene sofre todo tipo de preconceito por ser lésbica, é chamada de bruxa, demônio, as pessoas atravessam a rua se ela estiver na calçada, ela quase apanha no mercado. Fiquei pensando o quanto da própria experiência de Nicole não está nos eventos que acontecem com Verdene...
Thandi é a personagem que mais me tocou. Ela é uma garota talentosa, uma adolescente com seus sonhos e desejos, mas que é profundamente triste. Ela paga para uma vizinha para clarear a pele, pois acredita que se for mais clara, as pessoas vão ver como ela realmente é e assim ela terá mais chances na vida. Seus sonhos são aqueles sonhos juvenis que qualquer adolescente teria, mas por ter a responsabilidade nas costas de melhorar a vida da família, por todo mundo se sacrificar por ela, Thandi não sabe exatamente quem é. Por isso aplica produtos químicos na pele com uma fúria para não ser mais quem é. São as passagens mais tristes do livro.
Existem várias críticas feitas pela autora, como a exploração turística e sexual da região de Montego Bay. A forma como os moradores pobres acabam sendo deslocados para a criação de resorts de luxo para atender aos turistas e aos navios que chegam semanalmente. As pessoas vivem de maneira precária, com energia e abastecimento de água intermitentes, cada um tentando ganhar o dia da maneira que pode. São as lutas diárias de uma população que poderíamos ver em qualquer comunidade pobre no Brasil, na África do Sul, na Índia. Pobreza nesse sentido é universal, pois nossas necessidades básicas são universais e para muitos até isso falta.
Apesar de achar que Nicole apressou o final, deixando um tanto aberto para a maioria das personagens, ler este livro foi uma experiência única. Já o coloco ao lado de Kindred, Só a Terra Permanece, Flores para Algernon, como um dos meus favoritos para a vida. Não vou te dizer que será fácil, pois você provavelmente vai precisar parar e respirar fundo em alguns momentos, mas acredite, a leitura é essencial.
A Morro Branco trouxe um livro com uma linda capa que evoca o turismo da Jamaica, mas trazendo os barracos pobres de River Bank ao fundo. Não encontrei problemas de revisão ou tradução nele, feita por Heci Regina Candiani. O patoá, língua crioula de base inglesa falada primariamente na Jamaica, foi bem traduzido e imagino o desafio de aportuguesar as expressões.
Ficção e realidade
Quando Nicole diz que é jamaicana, a maioria das pessoas já pensa nas praias, nos resorts, no reggae e de como o povo jamaicano é bacana, amistoso e hospitaleiro. Ninguém ou quase ninguém pergunta a Nicole porque ela deixou o país e se radicou nos Estados Unidos. A visão do turista médio é de um país que deu origem a Bob Marley, todo mundo fumando maconha, mas na verdade Marley deu voz aos trabalhadores jamaicanos, separados da visão do paraíso que se tinha da Jamaica por causa do preconceito e do classicismo.Nicole Dennis-Benn |
Nicole se sentia infeliz em seu país, onde a mobilidade social é bastante reduzida e a sociedade é extremamente homofóbica, algo que ela trouxe para o livro de forma visceral. Sendo lésbica em uma sociedade que persegue e mata homossexuais, partir para os Estados Unidos se tornou a melhor opção. Lá ela cursou a Cornell University, fez mestrado em artes e hoje ensina escrita criativa e literatura. Bem-vindos ao paraíso é seu livro de estreia.
Pontos positivos
Margot e ThandiPersonagens bem construídos
Críticas ao turismo sexual e exploração
Pontos negativos
Violência contra a mulherLesbofobia
Final apressado
Avaliação do MS?
O livro chegou e eu logo o passei na frente das outras leituras. Terminei às 4 da manhã, aturdida, esgotada, grata pela leitura, chocada pelo o que li. Nicole criou uma obra-prima, um retrato cru de como as pessoas podem fazer coisas que jamais imaginaram se acreditarem que é para o bem. Margot cai nessa armadilha constantemente. Havia momentos que eu queria sacudi-la para não seguir determinado caminho. Só posso pedir que você leia Bem-vindos ao paraíso para entender, pois se eu contar mais posso acabar entregando todo o enredo. Tem muita discussão a ser feita sobre o livro. Cinco aliens para ele e uma forte recomendação que você leia também.Até mais! 🌴
Oi Sybylla!
ResponderExcluirQuando vi que a Morro Bronco lançaria esse livro, fiquei super curiosa! A trama parece bem pesada e dolorida, e se você colocou 'Bem-vindos ao Paraíso' ao lado de 'Kindred' já imagino que vá ser aquele soco no estômago dolorido, porém necessário.
Mas uma vez você me deixou angustiado para ler um livro por causa da resenha compenetrante.as editoras deveriam lhe oagar para fazê-los. Obrigado
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