O sequestro do Hugo Awards

Algumas pessoas têm acompanhando a treta no Hugo Awards e o caldo por lá nos istaites tá fervendo depois que a lista de indicados a um dos prêmios mais cobiçados da ficção científica saiu. Tudo isso porque uma onda conservadora se apoderou deste que é um dos prêmios mais importantes para a ficção especulativa. Obviamente, muitos autores estão de cabelo em pé com tamanha idiotice.




O Prêmio Hugo
O Hugo Awards ou Prêmio Hugo tem esse nome devido a Hugo Gernsback, fundador da primeira e mais importante revista de ficção científica, a Amazing Stories. Ela foi a responsável por muitos nomes conhecidos da ficção científica hoje em dia existirem, pois publicava contos de Asimov, Clarke, Bradbury, Heinlen e etc.. É praticamente um patrimônio da humanidade para os fãs de ficção científica por ter popularizado o gênero.

A premiação em si ficou conhecida, até 1992, como Science Fiction Achievement Awards e vem sendo entregue aos melhores trabalhos no meio desde 1953, quando acontecia a 11ª World Science Fiction Convention, sendo entregue todos os anos desde 1955. As categorias mudaram com o tempo, mas o Hugo ainda é entregue todos os anos na World Science Fiction Convention como o foco central do evento. O Hugo já foi chamado pelo Los Angeles Times como "uma das mais altas honrarias concedidas em fantasia ou ficção científica".

Para ser elegível ao prêmio, as obras não precisam ser escritas, necessariamente, em inglês e publicadas no ano anterior. São cinco indicados por categoria escolhidos por membros apoiadores ou atendentes da World Science Fiction Convention, ou Worldcon. Não é preciso estar presente no evento para votar. O prêmio em si, o estiloso foguete retrô, foi criado por Jack McKnight e Ben Jason em 1953, baseado no desenho de ornamentos de capôs de carros da década de 1950. Cada prêmio subsequente, com a exceção o de 1958, foi similar ao original em desenho. O troféu de foguete foi formalmente redesenhado em 1984, e desde então apenas sua base mudou em cada ano.

A polêmica
Nos últimos anos, o Hugo vem se mostrando aberto à maior diversidade. Todo mundo que é fã de ficção científica e fantasia sabe que são gêneros literários extremamente conservadores. Pegue qualquer livro de Asimov ou Clarke e procure pela diversidade. Você não vai encontrar, pode esquecer. Os velhos e batidos estereótipos de gênero, cor, orientação sexual, estão todos lá. Por isso, o Hugo vinha sinalizando nos últimos tempos uma maior abertura para mulheres, negros, genderfluid, comunidade LGBT como um resultado de uma audiência antenada com as mudanças sociais e maior visibilidade de minorias.

Mas assim como a representatividade importa ela também incomoda. E muito. Sempre vemos aquela ala de escritores brancos heteros cisgêneros que se incomodam com os pedidos por maior diversidade. No Brasil, então, diversidade parece tabu para alguns escritores que continuam se inspirando neles mesmos, para escrever enredos que gente parecida com eles vai ler.

Nos Estados Unidos não é diferente. Há toda uma ala conservadora atacando minorias, em geral de supremacia branca e afins, como vimos no caso do Gamergate, como vemos com todo o chorume que Anita Sarkeesian recebe, única e exclusivamente por questionar o papel da mulher em videogames e por aí vai. Se levantar questionamentos já gera toda essa dor de cotovelo, é óbvio que ela logo chegaria a outras instâncias. E chegou na premiação do Hugo.

No Hugo a decisão da elegibilidade de uma obra é deixada para os votantes, ao invés de um comitê organizador. Ou seja, é possível se utilizar das regras da premiação para colocar lá quem quiser. E foi o que uma galera conservadora, em geral escritores de direita reacionária, incomodada com o excesso de diversidade no prêmio, fez. No ano passado, muita gente ficou feliz com a diversidade de autores e obras ganhando o Hugo e este ano a vingança chegou.

Olhando os indicados deste ano é notável que muitos deles derivam de uma lista organizada por fãs em uma campanha chamada Sad Puppies, organizada por Brad R. Torgersen e Larry Correia. E isso não é contra as regras da premiação, afinal ela é feita pelos fãs e quem for membro da Worldcon vota por dois anos seguidos. Torgersen e Correia acreditam que exista uma agenda voltada apenas para colocar mulheres, LGBTs e pessoas não-brancas na premiação, promovendo suas próprias campanhas pessoais, e deixando de lado "a verdadeira ficção científica". No entanto, para quem olhar de fora e para quem não está incomodado como esses dois, diversidade é ótimo. Chega de tantos enredos contatos por homens brancos cis e heterossexuais.

George R.R. Martin e vários outros escritores ficaram abismados com a campanha e no que aconteceu com os indicados. Muitos autores pediram que seus nomes fossem retirados da lista. Escritores com posições homofóbicas como John C. Wright, que teve total apoio dos Sad Puppies, está concorrendo em três categorias e seus comentários sobre The Legend of Korra foram fortemente repudiados e descritos como "nojentos e levianos", já que Korra tem um relacionamento romântico entre duas mulheres. Martin foi além, dizendo que Torgersen e Correia quebraram o Hugo Awards de uma maneira que pode nem mesmo ter conserto.

Outro grupo claramente de direita e conservador é o dos Rabid Puppies, liderados por Vox Day (Theodore Beale), que também colocou seus escritores pelo sistema de votação em bloco, alegando que a premiação é controlada por uma ala esquerdista, que o controla e que tem controle ideológico sobre o Hugo por mais de duas décadas. Movimento este que está - na cabeça deles - fazendo o mesmo com a indústria de games ao pedir melhor representatividade de minorias. Beale acredita que mulheres não deveriam ter o direito ao voto e que negros são, naturalmente, "selvagens".

Para George RR Martin o que os Sad e Rabid Puppies fizeram foi trapaça pura e simples. Eles se utilizaram das regras do Hugo para promoverem sua agenda reacionária e Martin ressalta que não é porque uma coisa tem respaldo legal que ela é boa. Os Sad Puppies não inventaram essa maneira de votação em massa e em bloco, mas eles a subverteram para espalhar um movimento reacionário e danoso não apenas para a ficção científica e fantasia como gêneros, mas para os autores em si. O que serão dos ganhadores dos próximos anos se nada mudar? A qual grupo eles vão atender?

Larry Correia tem ligações com o Gamergate e tanto ele quanto Torgersen foram indicados para o Hugo em premiações anteriores e não ganharam. Não apenas eles, mas outras vozes aliadas ao Gamergate acreditam que a ficção científica está em perigo, assim como os games e que qualquer coisa que não valorize a cultura masculina, branca e heterossexual deve ser combatida. O io9 disse que este ano praticamente todos os indicados foram publicados pela Patriarchy Press. E a premiação, por décadas, foi dominada por ela, afinal o que mais temos neste meio são autores homens brancos cis e heteros escrevendo e sendo os heróis de seus enredos.

Foi em meados dos anos 90 e nos últimos cinco anos que campanhas por maior diversidade de autores, enredos e por maior representatividade surgiram, o que engrandeceu o Hugo e elevou nomes até então pouco conhecidos. Larry Correia ainda foi acusado de se utilizar dos comentadores de seu site para entregar ao Gamergate nomes dos Social Justice Warriors, um termo pejorativo aplicado a blogueiros, ativistas e comentadores engajados que se envolvem em discussões online, especialmente contra injustiças sociais.

A campanha está trazendo todo esse passado de volta. Com tantos homens brancos heterossexuais nas categorias, o Hugo envia uma mensagem perigosa para os leitores e escritores que não concordam com isso. Sabemos bem o que acontece com todo mundo, especialmente mulheres, que criticam machismo, racismo, trans* e homofobia na rede. Somos violentamente atacadas e no caso de Sarkeesian, chegam ameaças de estupro e morte. É esse o cenário do Hugo hoje, reacionário, masculino, branco e de direita.

Martin também sugeriu que os Sad Puppies deveriam criar uma premiação só para eles com categorias como "Melhor Ficção Científica Conservadora" e "Melhor Ficção científica dos velhos tempos que nunca deveria ter mudado". O que me mata é saber que livros conservadores, com heróis dos moldes que eles querem, escritos por autores machistas, racistas e homofóbicos já existem e aos montes. Isso não é uma exceção, é uma regra nos gêneros literários. Mas o movimento por maior diversidade incomodou tanto que eles optaram por sequestrar a premiação e dizer "olha, tamo incomodado, vocês não vão escolher os melhores, nós é que vamos".


Há futuro?
Muitos autores ganhadores em outras edições do Hugo e contrários a todo esse chorume estão movimentando os fãs para que usem o sistema de votação da premiação e coloquem No Vote em todas as categorias. Já que o sistema é tão fácil de manipular, que seja então manipulado agora para demonstrar a profunda insatisfação com o que aconteceu.

E se eles pensam que fazendo isso destruirão autoras e autores que lutam pela diversidade, eu esperaria sentada. Deitada, em coma, na UTI seria melhor. Enquanto estamos preocupados em construir mundos e futuros possíveis para todos, eles estão preocupados em manter a própria hegemonia num futuro que chegou, envelheceu, caducou e foi ultrapassado por um mundo onde mulheres são capitãs de naves, onde negros, gays e trans* possam ser bem representados em enredos. Isso já começou e não vai parar porque uma cambada de cara mimado tá incomodadinho.


Vocês podem tentar nos calar, mas não vamos nos dobrar nem aceitar seu conservadorismo. O mundo não vai dar passos para trás só porque vocês estão incomodados em perder privilégios. Vai ter mulher, negro, gay, lésbica e trans* na ficção científica e fantasia SIM!

Resistência e mudança, muitas vezes, começam na arte e muitas vezes em nossa arte, a arte das palavras.

Ursula K. Le Guin


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