Resenha: Ninguém Nasce Herói, de Eric Novello

Sabe quando você lê um livro e fica se perguntando se é uma distopia ou só a vida real mesmo? Pois então, é isso o que você pensa a cada página virada de Ninguém Nasce Herói, de Eric Novello. É assustador observar que poucas coisas nele são de fato ficcionais.



Este livro foi uma cortesia da Editora Seguinte


O livro
Em um futuro (?) não especificado e nem muito longe, o Brasil se tornou uma ditadura fundamentalista que não tolera grupos marginalizados. É aqui que você pensa que não tem muita diferença da nossa realidade, já que nosso país é o que mais mata transexuais, é um dos que mais mata e desrespeita mulheres, é um país racista e homofóbico. A diferença é que, no livro, uma figura política conservadora conseguiu ascender ao poder. Ele apenas serve para validar os preconceitos do resto da população conservadora que o apoiou.

Resenha: Ninguém Nasce Herói, de Eric Novello

É neste contexto sombrio que Chuvisco e seus amigos vivem. Chuvisco é tradutor (e acabei não conseguindo desvincular a figura do Chuvisco do próprio Novello) e tem um grupo unido de amigos, bastante diverso, cada um lutando à sua maneira contra o sistema. Chuvisco, Cael e Amanda, por exemplo, distribuem livros na Praça Roosevelt que são considerados "subversivos" pelo novo sistema, que ofendam "a moral cristã" da nação. Qualquer luta, por menor que seja, pode mudar a cabeça de uma pessoa.

Não é difícil perceber de onde o autor tirou a ideia e se inspirou para moldar esse novo Brasil. É só você passear pelos comentários de portais de notícias e redes sociais, cair em portais reaças do Facebook e ver como as pessoas destilam ódio disfarçado de "livre expressão" para notar que a linha que nos separa desse mundo ficcional é bem fina. O grupo de Chuvisco é composto por gay, por trans*, negro, gorda, todos com vida, opiniões e morais diferentes, mas que se respeitam, portanto estão na mira de grupos conservadores como a violenta Guarda Branca, que Chuvisco um dia flagra espancando um rapaz trans* na subida da Rua Augusta.

O Brasil começou a se tornar um país fundamentalista muito antes do Escolhido se candidatar a presidente. Quando ele era apenas um deputado bagunçando a Comissão de Direitos Humanos, todo mundo falou: 'Uma hora esse cara desaparece'. Quando ele assumiu a presidência da Câmara dos Deputados, todo mundo falou: 'Exposto dessa maneira, logo ele é investigado e desaparece'. Quando ele comandou a votação para acabar com os antigos direitos trabalhistas, todo mundo falou: 'Nem o partido dele vai apoiar isso, logo ele some e desaparece'. Quando impôs o Estatuto da Família, todo mundo falou: 'Isso é só para aparecer, ele logo desaparece'. E assim, servindo aos propósitos daqueles que o financiavam, ele se tornou presidente.

Página 336

Chuvisco se envolve de vez com a luta contra o Escolhido quando ajuda o rapaz que era espancado, que se apresentou como Júnior, mas acabou colocando um alvo nas costas. Isso o obriga a se esconder enquanto se recupera das pancadas que recebeu. Na tentativa de saber mais sobre Júnior, ele acaba em contato com a Santa Muerte, um movimento de resistência que se vale das redes sociais para desmascarar o governo e o Escolhido, que tem a mídia tradicional nas mãos.

Toda a ação nos é apresentada pela visão de Chuvisco, que é o narrador. Ele é peculiar pela forma como lida com a realidade, tendo "catarses criativas", que num primeiro momento me incomodaram, porque eu não saquei que elas eram coisa da cabeça dele. Para entendermos um pouco sobre a vida de Chuvisco, nós lemos seus emails ao seu antigo terapeuta e a transcrição de alguns de seus vídeos do seu canal no Youtube. Porém, como ele é o narrador, há muita coisas que não vemos. Há muitas similaridades com o período da Ditadura Militar, mas o clima nas ruas não parece tão tenso ou repressor como se esperaria. A própria Santa Muerte carece de mais profundidade.

Há momentos em que o enredo se arrasta pelas páginas, demorando para que recebamos importantes informações sobre a luta contra o Escolhido, sobre a Santa Muerte ou até mesmo sobre o paradeiro de Júnior. O final me desagradou pela forma apressada com que foi trabalhado. Eu esperava uma descrição rica dos eventos decisivos do qual Chuvisco faria parte, mas a cena é cortada e pula para outro momento e você não vê o que aconteceu. Foi criada uma grande expectativa para o evento contra a ditadura e depois... nada. Ainda assim, mesmo com a rápida descrição dos eventos, Novello finalizou de maneira realista, um pouco otimista e bastante plausível com o que propôs.

Ficção e realidade
O livro de Eric será encarado por muitos como uma assustadora distopia, um alerta que serve para ilustrar a evolução do nosso cenário político atual. Porém, para outras pessoas, essa é a realidade. O mundo distópico é real para os grupos marginalizados que apanham e morrem na rua apenas porque existem, porque estão vivos. O que vemos disfarçados de "liberdade de expressão" pelas redes sociais é o reflexo dessa distopia já instaurada para quem não está inserido no status quo, para quem vive à margem da sociedade.

Para alguns, porém, o cenário do livro seria um sonho realizado, como para a bancada da Bíblia-Boi-Bala. A utopia de uns é a distopia de outros. É aí que entra a importância de livros como esse, livros que toquem na ferida profunda que está acumulando pus no tecido da sociedade. Se só alguns grupos de pessoas têm acesso aos direitos básicos que regem a decência humana, nossa sociedade está fadada ao fracasso.

Eric Novello

Ninguém quer sentir medo ao andar na rua. Ninguém quer ser escorraçado, agredido. Ninguém quer sair de casa sem a certeza de que vai voltar só porque pensa ou age diferente.

Página 360

Pontos positivos
Chuvisco e seus amigos
Assustadoramente real
Autor nacional
Pontos negativos

Final apressado
Se arrasta em algumas partes

Título: Ninguém Nasce Herói
Autor: Eric Novello
Editora: Seguinte
Páginas: 380
Ano de lançamento: 2017
Onde comprar: Amazon

Avaliação do MS?
A literatura que machuca os tempos em que foi criada foi chamada por Zamiátin de "literatura danosa". É aquela obra que critica e aponta o dedo para o status quo, que vai contra a corrente, que nos mostra a profundidade das mazelas. O livro de Eric assusta porque nos mostra elementos reais, que fazem parte da vida de muita gente, com um cenário político assustadoramente familiar. Ele fala não apenas de ditadura e preconceito, mas também da importância da amizade, do companheirismo, do amor entre as pessoas, sejam elas parentes ou não. Em momentos difíceis, são eles que mantém uns aos outros em pé. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também.

Muito bom!

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Não sabia da temática dessa obra do Novello. Agora estou ansioso para lê-la.

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  2. Gente, lendo essa resenha em 2018 é quase como ler uma profecia, a passagem sobre o deputado que virou presidente me deixou de boca aberta.

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