O problema das utopias

Enredos utópicos costumam ter pouco apelo com o público. Sabemos que é muito difícil termos a "sociedade perfeita" e que até Star Trek apresenta seus problemas aqui e ali, mesmo que nem tudo sejam flores, se formos mencionar os problemas com os Romulanos, Borgs e o Dominium. O século XXI não presenciou a era de paz entre os povos e avanços que tanto queríamos, ao contrário, as diferenças aumentaram e se acirraram. E quanto falamos de utopias, muitas vezes, é justamente isso que elas estão ocultando. No nosso mundo atual, a utopia de um é a distopia de outro.

o problema com as utopias



Vamos às definições:

Utopia
substantivo feminino
1. lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos.
2. qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade.

O termo foi cunhado do grego por Thomas More, autor de Utopia, juntando o prefixo de negação οὐ ("não") e τόπος ("lugar") formando o "não-lugar" ou "lugar que não existe". Em Utopia, de 1516, Thomas More escreveu sobre uma sociedade isolada em uma ilha, seus costumes, política, religião. Inicialmente, o autor critica a Inglaterra e depois apresenta uma sociedade alternativa.

Distopias seriam o contrário, uma sociedade desigual, corrupta, que explora os mais fracos enquanto mantém os poderosos no poder. Parece familiar? Não é errado desejarmos uma sociedade livre de desigualdades, já que são elas que levam a crimes, fome, miséria. Mas qualquer sistema terá seus pontos fora da curva. Não é possível pacificar o mundo completamente, ou nos livrar das desigualdades enquanto um ser humano continuar explorando o outro. Controlar tudo, absolutamente tudo, para que nenhum ponto da curva surja está mais para um poder totalitário do que para um mundo utópico.

De Thomas More a Ursula K. LeGuin, os autores já sonharam com mundos ideais. A ficção é o melhor campo para tais experimentos como esse, mas a obra de Thomas More inspirou muita gente no futuro, incluindo os socialistas. E a União Soviética e a Alemanha Nazista, talvez os maiores experimentos sociais que já existiram, visavam uma sociedade radicalmente diferente das outras e ruíram, afundaram, tendo característica de qualquer distopia ao longo do caminho. O que as utopias ficcionais nos mostram é que por baixo do verniz de perfeição social, existe um viés marcado pelo sangue, desigualdade e morte.

Veja o caso de "Aqueles que se Afastam de Omelas", de Ursula K. LeGuin e sua incrível cidade perfeita, onde todos eram felizes. A utopia dos cidadãos, no entanto, dependia de uma criança, mantida na miséria, na sujeira, num quartinho escuro. Você, enquanto cidadão, ficava sabendo da história para poder decidir se ficava na cidade, ignorando o sofrimento daquela criança, ou se ia embora. Se um sistema se permite oprimir e subjugar uma pessoa que seja, essa utopia maravilhosa não funciona. Pois um pode virar desculpa para dois, depois meia dúzia, e depois cem, quinhentos, dez mil, um milhão. E aí?

A principal lição deixada pelos regimes totalitaristas, não importando a ideologia, é que não adianta fantasiar sobre como construir um mundo melhor. Precisamos é aprender a viver neste aqui. Onde um sistema injusto espolia as pessoas, para manter pouco bilionários. O estilo de vida vendido nos comerciais do iPhone esconde as condições insalubres de trabalhadores pelo mundo. As roupas numa arara de loja escondem horas e horas de trabalho mal pago, análogo ao escravo, de muitas costureiras. Enquanto uns vivem na utopia dos comerciais clean, em que a tecnologia funciona, outros estão acorrentados a mesas de trabalhos. É a criança de Omelas multiplicada por milhões.

Lembro de um episódio de Star Trek A Nova Geração, "Justice" (S01E08), em que a tripulação da Enterprise encontra um planeta idílico onde não há violência, não há crimes ou desobediência, as pessoas são magras, loiras, tudo é muito lindo e maravilhoso, mas quando Wesley Crusher, sem querer, destrói um jardim enquanto jogava com outros jovens, sua travessura é considerada um crime e ele é sentenciado ali mesmo, com uma injeção letal e o capitão Picard precisa interferir. Então é assim que se mantém a ordem? Com a execução sumária de adolescentes por causa de uns vasos quebrados? Isso é utópico? Não apenas não é utópico, como também é totalitário.

Devemos banir as utopias? Aí que está: não. O que seria da sociedade sem o idealizadores, sem os sonhadores, os pacifistas, protetores dos animais e do meio ambiente, aqueles que lutam por um mundo sem desigualdades, sem racismo, sem misoginia, sem homo\transfobia, sem pobreza e sem miséria? Como estaria o mundo hoje se não tivéssemos a noção de Direitos Humanos? São os sonhadores que sustentam as utopias. Mas ao invés de instaurar uma grande utopia, para todos, a função dos utopistas é tentar praticar as pequenas, já que sabemos ser impossível e até perigoso "utopizar" a sociedade, pois qualquer pessoa com desejos escusos no poder pode tentar eliminar o que lhe indesejado. Em Demolidor, era o sal e a cafeína, na Alemanha Nazista eram os judeus. Não existe sociedade perfeita; não existe ser humano perfeito.

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