Foco e concentração: privilégios para poucos

Desde a leitura de O cérebro no mundo digital, de Maryanne Wolf, que eu venho lendo e aprendendo cada vez mais sobre os desafios da concentração no século XXI. Sei que você deve estar com problemas para focar e se concentrar, pois eu também vinha sendo afetada. Percebi que existiam motivos para isso e que eu poderia remediar, mas há também um fator que precisa ser levado em conta e que geralmente não é: foco e concentração são privilégios. E para poucos. Identificar isso já é um grande passo.

Foco e concentração: não é para qualquer um

Leia também: Como anda a sua concentração?

Eu já estava na faculdade quando comecei a trabalhar na Fnac. Primeiro era só aos finais de semana, apenas para ajudar nos dias de maior movimento, mas depois me chamaram para trabalhar todos os dias. E eu fui, obviamente, pois precisava do dinheiro. Este foi um período tenso na faculdade, pois era o segundo ano, muita coisa para fazer, eu morava longe tanto do campus quanto do trabalho. Meus colegas colocavam meu nome na lista de presença e até em trabalhos, pois eu não prestava mais atenção em nada, nem conseguia estudar. Manter as notas altas para não perder minha bolsa foi um desafio que até hoje não sei como conseguir superar.

Como eu estudava na época? No metrô, no ônibus, isso quando não pegava no sono, já que dormia menos de 5 horas por noite. No trabalho não havia a menor condição, então eu tinha que usar qualquer tempo livre que eu tivesse para estudar e isso acontecia poucas vezes. Ler e me concentrar nas tarefas era difícil, fazer avaliações ou redigir textos, algo que sempre foi algo muito tranquilo para mim, também se tornaram um parto doloroso. Meu salário curto era a única renda da casa, eu vivia cansada, estressada, com medo de perder a bolsa e assim não conseguir me formar.

Há algo aqui muito importante, que a gente dá pouco valor e atenção. A capacidade de se concentrar e focar em uma tarefa é essencial para superar os desafios que este século apresenta no trabalho, na escola, em casa, em qualquer coisa que demande nossa atenção. É um momento que requer que a mente não pense sobre qualquer outra coisa além daquilo que precisa de seu foco total. É sobre não sofrer interferências externas, nem interrupções, nem qualquer outro fator que atrapalhe seu fluxo de pensamento.

E aqui entra o pulo do gato: a capacidade de mergulhar num fluxo de pensamento e de se concentrar é um privilégio que poucos têm acesso e um privilégio que também é econômico. Pouco se fala do efeito da pobreza na capacidade de concentração de alguém. O fato de se passar muito tempo num transporte público, as horas sem dormir porque se mora muito longe do trabalho e do estudo, alimentação inadequada, poluição do ar, falta de saneamento básico, a vizinhança que não respeita a lei do silêncio, casas abarrotadas de gente, a falta de um espaço individual, são inimigos da concentração, do foco, da atenção. A privação desde a infância afeta os cérebros das crianças, algo que será levado pela vida inteira do indivíduo.

Crianças em idade escolar que passem fome, sofram de anemia ou que tiveram uma gestação deficiente em nutrientes já começam em desvantagens quando comparadas a crianças que tiveram o cuidado necessário. Isso se agrava com uma vida de pobreza e privação. O cérebro é uma usina que necessita de muita energia para funcionar. Aquela criança com notas em queda na escola pode simplesmente estar desnutrida. Ou até mesmo com as roupas sujas. Uma escola de ensino fundamental no Missouri reduziu em 90% as faltas dos alunos apenas por instalar máquinas de lavar e secar na instituição. Enquanto elas estavam em aula, as roupas eram lavadas e a evasão praticamente acabou.

As circunstâncias sociais e econômicas de um indivíduo também pesam na sua capacidade de se concentrar. Quando você tem privilégios, não precisa superar esses desafios. E a diferença entre ricos e pobres, homens e mulheres, brancos e não-brancos aumenta quanto mais recortes fazemos. No caso das mulheres, por exemplo, quantas vezes uma mãe, que também é escritora, é interrompida por dia enquanto tenta trabalhar? É o marido procurando um par de meias, é a sogra ligando para saber do almoço de domingo, é o filho precisando de um livro para a escola. Não raro muitas mulheres trabalham madrugada a dentro, que é o único momento de paz, sem telefone tocando, sem berros pelo corredor.

Agora pense nos grandes homens que se dedicaram com afinco em suas áreas. Quantas mulheres (tanto esposas quanto empregadas e governantas) não estavam por trás deste fluxo de pensamento e consciência necessário para criar grandes obras imortais, impedindo os filhos de entrar no escritório do pai enquanto ele trabalhava, levando café e refeições na mesa para não interrompê-lo?

Alma Mahler-Werfel, esposa do compositor Gustav Mahler, foi proibida por ele de compor e pintar. Ela deveria se ater apenas à administração da casa e do cuidado com os filhos, cuidando ainda para manter a casa em silêncio para que ele pudesse trabalhar. Ele que ficasse com o sucesso e o reconhecimento. Em seu diário, ela escreveu:

Há uma luta dentro de mim! E um desejo miserável por alguém que pense em mim, que me ajude a me encontrar. Eu afundei até o nível de uma dona de casa!

Aumente o recorte racial e social, já que Alma era uma mulher branca e com certeza tinha criadas na casa, e a capacidade de uma mulher de exercer uma profissão ou de se concentrar em algo diminui consideravelmente. Mesmo em dias atuais, mulheres ainda são as grandes responsáveis pelo cuidado com a casa e com os filhos, ainda que trabalhem fora, seja na área que for. No caso de mulheres cientistas, quando sua produção acadêmica cai por causa da licença maternidade, isso não é levado em consideração na pontuação de uma pesquisadora.

Muita gente diz que tempo é algo gratuito. Tempo, na verdade, é privilégio. Se você tem tempo para ler um livro de uma ponta a outra sem ser incomodada, é um privilégio. Se você tem um espaço individual onde pode sentar na frente do computador com uma caneca de café e produzir sem interrupção, é um privilégio. Se você tem um espaço silencioso, agradável, comida na mesa e capacidade de se concentrar e focar em um trabalho, é um privilégio. Deveriam ser direitos básicos de qualquer cidadão, mas nosso sistema torna até mesmo o básico em um privilégio que poucos têm.

Maryanne Wolf diz que as telas estão minando nossa capacidade de se concentrar e focar em tarefas, inclusive em crianças sem problemas de atenção ou hiperatividade. Mas há o fator econômico e social também. Não se concentra com boletos acumulados e barriga vazia. Não se produz com interrupções diárias e a mente sobrecarregadas de funções. Não se foca em problemas que exigem um longo fluxo de pensamento se você não consegue dormir porque mora em um bairro com tiroteio todo dia.

A professora e pesquisadora Assata Richards só conseguiu se formar, fazer mestrado e doutorado e subir na carreira quando conseguiu entrar em um programa de moradia para mães solo em Houston, Texas. O apoio que teve para seu bebê foi essencial para ela pudesse se focar nos estudos e chegar o topo da carreira acadêmica, sendo hoje a diretora do Sankofa Research Institute. Quantas mulheres hoje poderiam subir na carreira e produzir se tivessem o mesmo incentivo? Sabemos a resposta.

Até mais.

Leia também:
A woman's greatest enemy? A lack of time to herself - Brigid Schulte
Focus Is a Privilege - Roxanna Asgarian
Como máquinas de lavar ajudaram a reduzir faltas em 90% em escolas dos EUA - BBC Brasil
Child Food Insecurity and Iron Deficiency Anemia in Low-Income Infants and Toddlers in the United States - Anne Skalicky et al.

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Comentários

  1. Excelente texto! Obrigado por compartilhar!

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  2. Oi, Lady Sybylla! Já acompanho o blog há um tempo (acho que 3 anos @_@) e acho que comentei pouco, ou quase nada, ao longo dessa jornada te lendo. Bom, senti que para esse texto em específico não queria deixar passar em branco um: Obrigado! Mesmo, obrigado por compartilhar essa linha de pensamento, essa troca/partilha possibilitada por existir o espaço do Momentum Saga que criou. Tenho enfrentado alguns problemas de foco e concentração ultimamente (faço terapia há um tempo também e tem ajudado muito com relação às cobranças externas e internas em questão de produtividade). Enfim, queria dizer que esse texto me ajudou muito a compreender algumas questões e, fora isso, trouxe motivação em me organizar como posso (no momento de vida que estou) para me sentir confortável quanto a minha leitura, escrita e produção.
    Um abraço e bons livros! =D

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  3. No livro "Um Teto todo seu da Virgina Wolff, ela comenta que as grandes escritoras do passado tinham três coisas em comum: não tinham filhos, tinham maridos que as apoiavam e tinham grana.
    Parece que pouco mudou.

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