Quando você se machuca em casa, o que você faz? Vamos supor que você tenha cortado a mão. Você lava? Passa uma água oxigenada? Uma pomadinha antisséptica? Coloca uma gaze ou um band-aid para proteger o local? Pois saiba que esse hábitos são extremamente recentes. Não havia a noção ou conhecimento de que micro-organismos pudessem causar doenças, então lavar feridas, desinfetar, eram conceitos que não existiam até uns 150 anos atrás. Lindsey abriu os arquivos médicos vitorianos e mostrou como um determinado cirurgião revolucionou a medicina, a ciência e a cirurgia.
O livro
Enquanto a medicina era uma coisa para cavalheiros renomados e, em geral, ricos, a cirurgia era vista como um trabalho braçal qualquer. Ser cirurgião na era vitoriana e antes disso era um trabalho equivalente ao de um açougueiro. Esqueça o prestígio de hoje, o cirurgião ganhava menos que um zelador do hospital e geralmente não era assalariado. A maioria ganhava algum dinheiro abrindo clínicas particulares. E os hospitais então... Esses eram locais de morte. Ser internado nessa época era praticamente aceitar um atestado de óbito de presente.Muitos cirurgiões das primeiras décadas do século XIX não cursavam a universidade. Alguns eram até analfabetos. Logo abaixo deles vinham os boticários, que se encarregavam de ministrar medicamentos. Em tese, havia uma demarcação clara entre o cirurgião e o boticário. Na prática, porém, o homem que tivesse sido aprendiz de um cirurgião, também podia exercer o ofício de boticário, e vice-versa.
Página 16
Cirurgião bom era aquele que amputava membros com extrema rapidez, que andava sujo de sangue, que usava o avental sujo do colega, cheio de sangue e pus. Os anfiteatros cirúrgicos ficavam lotados para ver os melhores cirurgiões em ação. Alguns eram tão rápidos que perdiam o controle do instrumento e chegavam a perder dedos ou amputavam partes demais dos pacientes. E claro, não havia anestésicos. Os pacientes eram amarrados à mesa ou desmaiavam de dor e de choque da perda de sangue. Como os cirurgiões entravam em contato com sangue, pus e matéria fecal sem nenhuma proteção, era comum que eles mesmos morressem de infecção algum tempo depois, já que ninguém lavava as mãos.
Embrulhou o estômago, não foi? Pois é. Lindsey não poupa palavras na hora de explicar o cenário de horror que era um anfiteatro cirúrgico na era georgiana e vitoriana. Enquanto hoje um cirurgião se paramenta da cabeça aos pés, em um complexo processo de limpeza das mãos e há uma sala cirúrgica preparada para a operação, os procedimentos nessa época eram feitos sem o menor cuidado de higiene. Na verdade, os médicos esperavam que pus se formassem nas feridas, pois acreditavam que ajudava na cicatrização. E como você pode imaginar, as mortes eram altíssimas, pois a sépsis, a gangrena e a piemia (formação de múltiplos abcessos pelo corpo) eram absurdamente comuns e as mortes por infecção generalizada também eram.
Isso começou a perturbar o cirurgião Joseph Lister (guarde esse sobrenome). O jovem e devoto cirurgião da religião Quaker se viu atormentado pela quantidade de mortes nas enfermarias onde trabalhava. Não só isso, a tal da "fedentina hospitalar", o cheiro de vários corpos humanos sem banho, sem condições de higiene, em vários estados de gangrena, era algo impossível de vencer. Tanto que se acreditava que as miasmas, ou seja o ar venenoso, era o culpado pelas mortes. Mas Lister era um cientista, ainda que amador e persistiria em sua busca por uma solução para tantas mortes.
Aí duas coisas aconteceram: a primeira foi que ele notou que quando o esgoto da cidade, que levantava um mau cheiro terrível em todas as ruas, era tratado com ácido carbólico, o odor pungente desaparecia. Será que ele poderia usar ácido carbólico nas gangrenas dos pacientes? Afinal, tecido apodrecendo fede, ele apenas fez uma simples analogia. Depois Lister teve contato com o trabalho de Louis Pasteur, sobre a ação de micro-organismos que causavam doenças.
Adotando uma postura científica e fazendo experiências em seus pacientes, Lister conseguiu transformar as enfermarias enquanto trabalhava nelas. Passou a esterilizar instrumentos cirúrgicos com ácido carbólico, as mãos, os aventais e a exigir a troca da roupa de cama de seus pacientes sempre que necessário. A fedentina hospitalar sumiu, as alas dos pacientes se tornaram lugares frescos, claros e limpos. O problema era convencer seus colegas cirurgiões e médicos.
Por incrível que pareça para o nosso olhar nos dias de hoje, muitos médicos se recusavam a usar as técnicas listerianas, pois não acreditavam em germes. Eles inclusive defendiam os anfiteatros cirúrgicos com todo o sangue nas mãos e no chão. Lister foi ridicularizado e chamado de charlatão por vários colegas, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos por sua defesa da antissepsia.
A lenta conscientização veio com os sucessos de Lister e seus apoiadores, que conseguiam provar a eficácia da técnica e até o selo de aprovação da rainha Vitória Lister conseguiu depois de operar a rainha. O legado deste cirurgião pode ser sentido até os dias de hoje, já que seu nome designa um antisséptico bucal muito famoso, o Listerine (falei pra guardar o sobrenome!). Sem seus esforços durante décadas de obrigar cirurgiões e corpo médico a manterem o asseio e a higiene no trato com pacientes, quantos milhões de pessoas teriam morrido? A infecção hospitalar ainda é um fantasma que assombra enfermarias de hospitais do mundo inteiro, mesmo com toda a higiene que um hospital tem (ou deveria ter).
O livro da Intrínseca está perfeito. Minha edição veio com um pôster bem legal com um resumo de como era a cirurgia na época. O livro é em capa dura, com a brochura pintada de preto e uma fitinha para marcar a página. A diagramação e a arte do miolo estão perfeitas e praticamente não há erros de tradução ou revisão no livro. A tradução ficou nas mãos de Vera Ribeiro e está perfeita.
Todo paciente, até o mais degradado, deve ser tratado com o mesmo cuidado e a mesma consideração que se dariam ao próprio príncipe de Gales.
Joseph Lister, página 161
Obra e realidade
Um dos grandes méritos de Joseph Lister, que além de ter revolucionado a cirurgia e tratar seus pacientes com humanidade, se recusando a chamá-lo pela doença que tinha, foi a adoção do método científico como princípio. Em grande parte por influência do pai, também cientista amador, ele se valeu do uso do microscópio, tido como um mero brinquedo esotérico na época, para suas pesquisas sobre as causas das mortes de seus pacientes. Seus colegas o viam com despeito, riam de sua rigidez nas pesquisas e nos estudos.Lister observava os fenômenos, formulava uma hipótese, realizava testes, via que não dava certo, voltava para a mesa de estudos e continuava. Ele elevou o cirurgião e seu ofício a uma ciência, salvando milhões de vidas nesse processo e transformando os hospitais para sempre. Em tempos de profundo obscurantismo e ignorância, em que a ciência foi eleita inimiga da sociedade, um livro como esse é uma luz no fim do túnel.
Lindsey Fitzharris é uma escritora e historiadora da medicina norte-americana. Morando no Reino Unido com o marido e dois gatos, é criadora do blog The Chirurgeon's Apprentice e da série de vídeos Under the Knife. É doutora em história da ciência de medicina pela Universidade Oxford e escreveu para vários portais como o The Guardian e o The Lancet.
Pontos positivos
Bem pesquisadoBem escrito
História de Joseph Lister
Pontos negativos
Pode ser nojentinho
Avaliação do MS?
O livro é daqueles que você pega e não consegue largar mais até chegar ao final. Com uma escrita empolgante e fácil de acompanhar, nós acompanhamos a evolução dos hospitais e suas enfermarias e a história de vida de Joseph Lister, que é considerado hoje o "pai" da cirurgia moderna. Determinado a impedir mais mortes entre seus pacientes, Lister desafiou as convenções da época e elevou a cirurgia à uma ciência de prestígio e iniciou uma era de maior cuidado com a higiene, cujos reflexos sentimentos até hoje. Uma leitura essencial, ainda mais nos dias de hoje. Super recomendado e leitura obrigatória para você!Até mais! 💉
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