Ian McEwan e o desprezo pela ficção científica

Semana passada a comunidade de ficção científica ficou bem irritada com uma fala do escritor Ian McEwan. Lançando um livro novo sobre inteligência artificial, chamado Machines Like Me (Máquinas como eu, que vai sair pela Companhia das Letras), o autor declarou que o livro não é uma ficção científica. De início achei que eu é que tinha entendido errado, porém Ian reiterou que o livro em uma realidade alternativa em que Alan Turing não tirou a própria vida e criou a inteligência artificial, uma realidade em que JFK não foi assassinado, não é uma FC.

Ian McEwan e o desprezo pela ficção científica
Arte de Tithi Luadthong

O que Ian McEwan disse em uma entrevista foi:

Poderia haver uma maior abertura na mente dos romancistas em explorar este futuro, não em termos de viajar a dez vezes acima da velocidade da luz em botas anti-gravidade, mas em realmente olhar para os dilemas humanos de se estar perto de algo que você sabe ser artificial, mas que pensa como você. Se uma máquina parece um ser humano ou você não sabe a diferença, então é melhor começar a pensar se ela tem responsabilidades, direitos e tudo mais.

Nem sei se eu conseguiria explicar isso para Ian, que é bem claro que não tem o costume de ler ficção científica para poder soltar uma frase dessas, de que dilemas humanos é o tema mais básico que a FC trata. Não é à toa que muita gente na comunidade de FC se indignou, pois dilemas humanos norteiam a ficção científica desde que o gênero moderno se estabeleceu. Aliás, inteligência artificial, os conflitos morais a respeito da consciência de androides e robôs, realidades alternativas, são assuntos diários na vida de quem escreve e consome FC.

Pegue Frankenstein, de Mary Shelley. Uma criatura criada de maneira artificial, abandonada por seu criador, desenvolvendo um ódio profundo pela humanidade que o rechaçou. Só os dilemas que o romance de Shelley trabalha geraria outros três textos. Frankenstein trabalha com bioética antes mesmo do termo ter surgido e estabeleceu o que nós entendemos como a moderna ficção científica.

Leia também: A importância de Frankenstein

Os grandes clássicos como Admirável Mundo Novo, 1984, O Conto da Aia, A Mão Esquerda da Escuridão, além dos livros mais recentes como Justiça Ancilar, Encarcerados, A longa viagem a um pequeno planeta hostil, Robopocalipse, The Stars Are Legion, entre tantos outros, todos trabalham dilemas humanos. TODOS. Eu posso citar de cabeça mais uns dez, posso indicar sem errar para as pessoas que nunca leram FC a como iniciar no gênero.

A fala de Ian tem um ar esnobe, daquele tipo que separa em ficção literária e ficção científica, sendo uma literatura com L maiúsculo e a outra com um l minúsculo. Em seu ensaio de 1965, "Science Fiction", Kurt Vonnegut disse:

Tenho ocupado uma gaveta de arquivo rotulada de ❛ficção científica❜ e gostaria de sair, especialmente porque muitos críticos sérios confundem a gaveta com um mictório.

Não é surpreendente o desgosto de Kurt, pois ele é o meu e de muitos que estão dentro do meio da FC. Somos considerados autores escapistas, nem somos levadas a sério na comunidade literária. Já vi várias declarações semelhantes à de Ian, que diziam que não tinha problema em ler FC, é bom ler escapismo e deixar a mente viajar em historinhas bobas. Aqui mesmo no MS eu já recebi comentários que diziam que graças aos textos aqui publicados eles passaram a ver a FC com outros olhos, porque achava que era um gênero bobo, com aliens e naves e tiros de laser.

As declarações de Ian pioram consideravelmente, pois além de achar que seu livro não é de FC, ele diz que seu livro é um "anti-Frankenstein". Não sei se ele está tentando se vender como um autor ousado, que está se aventurando em um campo que desconhece ou se ele está apenas esnobando mesmo, pois o que ele afirma ser inovador no pensamento literário também já foi trabalhado décadas atrás, no que é comumente chamado de Nova Onda, nos anos 1960 e 1970, sem contar quase todo o trabalho de Philip K. Dick e Isaac Asimov. Até Margaret Atwood declarou que não considerava O Conto do Aia uma ficção científica.

Esse desprezo não é só da parte de autores como Ian. Muitos leitores também desprezam a ficção especulativa em geral, desconsiderando todas as discussões que são feitas para alegar que é apenas escapismo. Podemos sim ler e nos divertir com uma leitura, mas há vários subtextos nestes livros que podem ser trabalhados. Não é à toa que temos clássicos do gênero ainda sendo lidos, estudados e discutidos. Uma pesquisa dos autores Gavaler e Johnson, de 2017, apontou que quando um leitor já tem preconceito com FC, se ele pegar um texto que mencione antigravidade, velocidade de dobra, termos que indicam que aquele texto é uma ficção científica, ele fará menos esforço em ler e prestar atenção ao enredo. Um drama familiar em Roma e um drama familiar em Marte e ele vai dizer que não conseguiu entender o dilema em Marte.

A questão aqui não é a classificação de obras neste ou naquele gênero literário. Acredito que a classificação ajuda no catálogo, nas livrarias, nas bibliotecas, mas não devemos seguir o registro ao pé da letra. Um livro pode trabalhar com muitos temas diferentes que se encaixariam em diversos gêneros e subgêneros. A questão é o desprezo, o desconhecimento de uma área de literatura que tanto tem a nos dizer.

Alguns estudiosos da FC colocam na conta do sucesso dos romances góticos no século XIX o desprezo que muitos ainda hoje nutrem pela ficção científica. Como havia autores ganhando muito dinheiro com as publicações seriadas em revistas, quem escrevia ficção literária começou a desprezar e a espalhar o boato de que era material de "quinta categoria". Não só isso, as revistas pulp, feitas de papel inferior, com capas de gosto duvidoso, da Era de Ouro, aliado ao tecnobable incansável de muitos autores, reforçou o desprezo de muita gente por aquelas revistas baratas.

Estas revistas baratas de papel jornal não tinham apenas FC, mas também horror, gótico, romances picantes e vendiam feito água. A noção do senso comum de que o que é barato é de má qualidade pode ter sido um agente catalisador do preconceito de muita gente hoje, que sem ler ou conhecer a fundo as obras e as discussões dentro da FC, acabam por desprezá-la ou não levam a sério. Pior ainda: elas leem um livro muito bom de FC, algum livro que chegue na lista dos mais vendidos e automaticamente o tiram da FC e encaixam em outros gêneros. Acontece com filmes também.

Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, jamais seria colocado na prateleira de FC, mesmo sendo uma distopia onde todos, exceto uma mulher, perdem a visão. Este livro não está longe de outras obras distópicas que discutem a moralidade, sobrevivência e humanidade. É bem capaz que a editora perdesse vendas se Saramago passasse a ser chamado de um autor de ficção científica.

Mas e aí, o que fazer para reduzir os efeitos do preconceito com FC e fazer com que autores como Ian McEwan assumam suas obras pelo gênero a que pertencem? Não tem outro meio além de publicar obras e ler. É ter profissionais dedicados trabalhando junto dos autores e publicando seus livros, tornando-os conhecidos. Não podemos falar daquilo que não conhecemos, então as pessoas precisam ter acesso aos livros. Ficção científica nunca foi sobre botas antigravidade e motores de dobra e sim sobre nossos dilemas. Usamos a tecnologia, as realidades alternativas e a ciência de maneira a criar metáforas que façam com quem as pessoas pensem.

Noah Harari disse que a ficção científica é o único gênero literário capaz de discutir nossos dilemas atuais, indicando possíveis caminhos a seguir. Acredito que Ian não tenha compreendido ainda o potencial que a ficção científica tem de nos levar para lugares e situações, seja usando uma realidade alternativa, seja usando botas antigravidade. E acho que Gene Wolfe foi certeiro ao dizer:

Todos os livros são uma fantasia. Alguns são mais honestos a respeito.

Até mais!

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Comentários

  1. Excelente texto. Incrível como esse tipo de preconceito ainda paira sobre a literatura. Com esforço, isso está mudando aos pouquinhos. É lento mas é sólido.

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  2. Sim!!!! Nossa, eu tô lendo o livro do McEwan agora e é incrível como ele é todinho ficção científica, inclusive a narrativa é extremamente H. G. Wells. Difícil demais esse pedantismo.

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  3. Oi Capitã!
    Fizemos uma resenha sobre Maquinas como Eu e na resenha a Bel comenta sobre este teu texto, se quiser conferir, segue! <3

    http://www.estantediagonal.com.br/2019/12/maquinas-como-eu-ian-mcewan.html

    Beijos Joi

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