Ficção científica e o medo do futuro

Se tem uma coisa muito boa que toda a discussão pelo o que houve com o prêmio Hugo gerou foi a respeito do medo de algumas pessoas com o futuro. Elas temem um futuro que consiga incluir todas as pessoas esquecidas pela mídia e pelas artes. Acima de tudo e de todos os preconceitos, elas temem a mudança. E mudança, meus caros, é a ordem nesse universo desde que ele surgiu.





Tudo no universo está em constante mudança. De nuvens moleculares que se transformam em protoestrelas, de estrelas que se transformam em supernovas, de um planeta estéril e sem vida para um planeta Terra, rico em fauna e flora, onde todo o tipo de bicho esquisito andou por sua superfície. De árvores ao contrário, até pterodáctilos com 2 metros de envergadura, de Archeas a seres humanos. Mudança faz parte da vida. Nada ao nosso redor é estático, nem mesmo nosso planeta e suas placas tectônicas.

Infelizmente, o pensamento de algumas pessoas é estático, engessado, mumificado. Pessoas que vivem no passado causaram um racha sangrento na ficção científica e na ficção especulativa em geral ao sequestrarem o prêmio Hugo e ainda ameaçarem dizendo que farão algo pior com ele se as pessoas forem contra o movimento. Essas pessoas alegam que a ficção científica perdeu seu componente fantástico, de aventuras espaciais e heróis e que qualquer coisa fora disso é chato pra KCT, uma agenda política.

Se essas pessoas fossem realmente fãs de ficção científica elas saberiam que o componente político esteve presente em toda a sua totalidade. Tudo o que nós produzimos é dentro de um contexto, dentro de um tempo, até mesmo aquela novela de FC onde o herói é homem-branco-cis-hetero, que vai em um planeta salvar a mocinha de uma tribo de selvagens em meio a dinossauros e plantas gigantes. Essa obra foi escrita em um contexto de dominação de uma comunidade patriarcal machista, em meio às explorações aos confins do planeta, em terras exóticas. É um texto de reafirmação de superioridade. Não é algo isento de poder.

Se surgiram escritos que vão contra essa dominação, como por exemplo, com mulheres protagonizando enredos e derrubando regimes, salvando o mundo, se temos negros e gays como protagonistas em filmes, séries, livros e quadrinhos, esse é um contexto de luta e reafirmação, de pensamento futuro. É algo que vai contra a dominação. Se antes tínhamos apenas a visão dominante, hoje temos a oportunidade de dar voz àqueles que antes estavam sufocados. É um sinal de mudança e de uma mudança bem vinda, pois ela garante que todos possam ter seu espaço numa arte que só ganha ao agregar.

Foto de Tejal Pajni.

Vejo esse medo do futuro em muitas obras por aí. Seja por falta de imaginação, seja por não pensar nisso, seja por falta de criatividade, seja por todas as anteriores. Isaac Asimov parece ter um sério problema com mulheres, pois além de se utilizar pouco delas, ainda as descreve de maneira pobre e estereotipada. Parece que houve alguma guerra gênica e racial no futuro de Asimov, que apagou da existência toda a diversidade humana. E não adianta vir para cima de mim com a Dra. Calvin.

Clarke também não sabia escrever personagens que não fossem uma personificação de si próprio. No livro 2001 só temos duas personagens femininas: uma criança e uma aeromoça. Em A Cidade e as Estrelas, temos três mulheres: uma não fala nada, a outra é irracional e emotiva, a outra é quase masculinizada e comparada a um homem por ser a líder.

O medo do futuro é visível nos fãs também. Na minha lista de 10 livros preferidos de FC, a maioria esmagadora das respostas dos leitores tem dez livros escritos por homens. Brancos. Cisgêneros. Heterossexuais. Vejo esse medo nas editoras, como a Aleph, que ao ser confrontada por não trazer diversidade em suas publicações, alegou dar preferência pela qualidade e não por "agendas". Olhe o catálogo dela e veja o conservadorismo de suas obras. Uma editora de ficção científica onde o futuro não chegou.

Pessoas que se dizem escritoras que bradam não poder escrever personagens negros, mulheres ou gays porque não sabem como é ou nunca conviveram com eles, também têm medo do futuro. Não só do futuro, como da criatividade, que é um requisito básico para ser escritor. Mostram a incapacidade de se colocar no lugar do outro e de experimentarem; mostram a incapacidade de pesquisar e de conhecer pessoas. Se mostram totalmente incapazes, apesar de publicarem seus livros.

O medo do futuro não se traduz nas distopias adolescentes. O medo do futuro se traduz nas críticas feitas por leitores por esses livros trazerem moças adolescentes como protagonistas derrubando regimes autoritários. Ele se traduz a cada vez que um homem manda uma mulher nerd lavar uma louça porque deu pitaco em um assunto machista, pois ele tem medo do futuro em que ele seja também responsável pela tarefa.

O medo do futuro se traduz no conservadorismo de Sad e Rabid Puppies, de escritores que alegam haver uma conspiração editorial, em editoras conservadoras e a cada vez que você prefere reler um livro do Asimov ao invés de pegar um livro recente escrito nos últimos cinco anos, por uma mulher.

Foto de Tejal Pajni.

A mudança está aí e algumas pessoas estão perdendo o Shinkansen que vai direto para o futuro. Uma pena. Neste futuro há espaço para todos aqueles que se livrem dos medos e dos preconceitos. Neste passado estranho não tem lugar para nós.

Até mais!

O passado é uma terra estrangeira. Lá eles fazem as coisas de outro jeito.

L.P. Hartley

Comentários

  1. Me representa! Amei o texto e a pelica doeu mais que mil bastões contra a testa. Parabéns pela sua escrita cativante! Inté!

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