O que é ficção científica feminista?

Desde que o ebook Universo Desconstruído foi ao ar, Aline e eu temos acompanhando a interwebs e ouvido críticas positivas e comentários construtivos sobre o Universo Desconstruído. Mas também temos visto muita desinformação, muitas palavras grosseiras e gente confundindo machismo e sexismo com feminismo, colocando tudo no mesmo balaio. Também tem gente dizendo que FC feminista não existe e que vamos acabar "deslegitimando" o movimento. Esse post é para você que pensa tudo isso.





Se as pessoas tivessem lido os vários posts feitos pelos autores, se tivessem lido a introdução do ebook ou se tivessem ido ao Google pesquisar, elas teriam visto que ficção científica feminista NÃO É COISA DA NOSSA CABEÇA (minha e da Aline). O subgênero existe de fato e é um movimento com maior tradição nos Estados Unidos e Europa.


O que é?
De acordo com o Wikipedia:

É um sub-gênero da ficção científica que lida com os papeis femininos na sociedade. Questiona o modo como a sociedade constrói os papéis de gênero, o modo como a reprodução define o gênero e questiona também o poder desigual entre homens e mulheres.

O modo como os autores e autoras lidaram com isso em seus enredos, em geral é com utopias, onde os gêneros não enfrentam desigualdades ou em distopias, onde as diferenças são radicalmente realçadas para gerar a reflexão. Ou seja, uma ficção científica feminista faz o mesmo que a ficção científica faz ao analisar o comportamento da sociedade diante da tecnologia, da ciência e do futuro, só que ela faz isso através dos papéis de gênero, dos estereótipos e da desigualdade de direitos entre homens e mulheres. Quando aliada ao feminismo liberal e inclusivo que norteia o movimento hoje, podemos incluir nas discussões todas as minorias não representadas na literatura e nas artes.

Não apenas a ficção científica, mas a fantasia também é - ou deveria ser - um campo muito prolífico para lidar com os problemas sociais já que oferece a chance de criar mundos novos, mundos diversos, para que os autores possam extrapolar as sociedades e daí poderem fazer uma crítica. O próprio caráter subversivo destes gêneros deveria trazer essas reflexões aos leitores ao criticar o mundo em que vivemos. O problema é que a FC e a fantasia são hoje ainda dominadas por homens, brancos, heteros, que produzem para homens, brancos, heteros, e que pouco trabalham questões de gênero. Os estereótipos ainda são amplamente usados.

Mary Shelley, considerada a mãe da ficção científica, recriou o mito de Adão e Eva ao criar uma nova forma de vida assexuada com a ajuda da ciência. Como o movimento feminista inicial - que alguns chamam de radical - contemplava apenas as mulheres nascidas e identificadas com o gênero feminino, surgiram obras bastante críticas e pouco inclusivas, com foco em sociedades distópicas e ditatoriais, apesar de fazerem críticas severas à sociedade patriarcal.

Foi com as mudanças mais profundas no movimento feminista, a partir do final dos anos 70, que começaram a surgir obras que questionavam o sexismo na própria produção de ficção científica e em como as autoras eram encaradas pelos autores homens. E depois do que houve no boletim nº 200 da SFWA vemos que a luta ainda é grande para acabar com o sexismo. Octavia Butler trabalhou com as questões de cor e gênero em The Kindred, uma das grandes obras de FC feminista e ainda hoje, nos quadrinhos especialmente, as mulheres figuram com importantes papéis de heroínas. Os trabalhos de Moto Hagio inspiraram várias obras de Ursula K. Le Guin. Moto criou o chamado Shōjo manga, um estilo ou norteamento de mangá que foca em meninas e adolescentes dos 10 aos 18 anos. Costuma ter romance e dramas adolescentes, mas com foco nas personagens femininas. Sakura Cardcaptor e Sailor Moon são os melhores exemplos de shōjo manga.

Tudo coisa da nossa cabeça, né?

As críticas
Algumas pessoas vieram questionar que o Universo Desconstruído é uma obra sexista e que portanto nossa iniciativa só servia para reforçar as diferenças e para ~diminuir~ o gênero masculino. L.E.I.A.M. Ninguém nunca avisou à essas pessoas que não se julga um livro pela capa e pelo título? Questionaram que nós estávamos produzindo ~mais do mesmo~, pois já existe muitas mulheres em enredos de ficção científica. Então, queridão, deixa a tia explicar, ter uma mulher num enredo de ficção científica é diferente de ter uma ficção científica feminista. Tem uma mulher em Transformers, não tem? Tem alguma reflexão sobre os papéis de gênero ali ou ela está lá apenas por ser o objeto de desejo do protagonista?

Disseram também que a gente deveria conhecer autoras de ficção científica. Não só conhecemos, como as lemos e inclusive CITAMOS na introdução do Universo Desconstruído, onde explicamos o porque da obra existir. Enquanto nos EUA existe um movimento mais forte, no Brasil não havia obra de FC feminista. Temos poucas e corajosas autoras nadando contra a correnteza na nossa literatura dominada por homens e heteronormativa, mas essa produção precisa aumentar. O movimento feminista critica, e com razão, a produção cultural machista, mas vejo pouca produção para mostrar que podemos ter obras que façam os questionamentos que tanto cobramos. Só criticar apenas torna o movimento desprovido da capacidade de modificar as coisas.

Outro comentário "curioso", que nós tínhamos que ver mais séries de FC, como Star Trek. Sério, se a gente não fosse fã de ficção científica, não nos arriscaríamos a escrever sobre isso! E por que essa cobrança? Eu tenho que apresentar carteirinha de milhas de Star Trek, Babylon 5 e Stargate para provar que conheço muito bem este universo? O que estão fazendo com o nosso ebook é o mesmo que fazem com as mulheres e com o feminismo o tempo todo: julgando antes de conhecer, homexplicando como se não entendêssemos nada.

Aline e eu, e nossos corajosos parceiros escritores, aprendemos muito com tudo. A obra não está perfeita, mas nós demos a cara para bater e estamos encarando a recepção, mesmo que negativa, de uma maneira bastante otimista. É bom ver que incomodamos. É bom ver que tem gente se dispondo a ler. Nenhum homem, mulher, criança ou alienígena foi machucado para a composição desta obra, ao contrário. Em vários contos temos mulheres colaborando com homens e ambos trabalhando juntos, sem estereótipos, sem competição, sem disputas.


As reclamações que eu vi não passaram de male tears e mimimi de gente desinformada. Nós pegamos dois gêneros marginais, os juntamos, distribuímos uma obra gratuitamente e ao invés de darem um momento de reflexão a si próprios, tem gente descendo o pau. Produção de ficção científica mais do mesmo existe em toneladas, ninguém vai ficar desprovido de ver seu filme de ação, explosão, gostosas e alienígenas só porque um ebook de ficção científica foi ao ar. Mas quem quer ler algo que busca fazer uma reflexão e uma crítica ao sistema vigente, agora tem mais uma.

Parem de reclamar. O sub-gênero já existia, não inventamos isso. Apenas o trouxemos para o território nacional e o popularizamos e esperamos que isso inspire mulheres a escrever e a homens a quebrar estereótipos sempre usados. Nós nos mobilizamos e fizemos algo novo. Os reclamões fizeram o que?

Até mais!


Leia mais:
5 Reasons Why So Many People Believe Feminism Hates Men and Why They’re Not True
Bibliografia em inglês de FC, Fantasia e gêneros correlatos feministas


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