Insubmissas escritas de mulheres

Uma bomba atômica de proporções cataclísmicas caiu no mundo da literatura masculina na última semana. Desesperados por verem sua relevância, importância, universalidade e masculinidade sendo jogadas para escanteio, homens que escrevem se viram compelidos a vomitar todo tipo de disparate pela internet devido à divulgação de livros obrigatórios para o vestibular da Fuvest a partir de 2026 (perceba, nem é pra agora!). Acalmem-se, rapazes, partir de 2029, autores da literatura brasileira e de língua portuguesa de escrita masculina voltam a aparecer na lista. Mas por que essa comoção toda?

Insubmissas escritas de mulheres
Mulher escrevendo uma carta, de Gerard ter Borch (1655)

É triste pensar que estamos em 2023 e tem escritor martelando seus teclados para reclamar da lista da Fuvest, como se tivessem decretado o fim da literatura escrita por homens. Não foram poucos os editoriais, textos, tuítes e chororôs reclamando da decisão que apenas quer valorizar o papel das mulheres na literatura. Muitas autoras tiveram que lidar e ainda lidam com a invisibilidade de seus trabalhos e foi preciso a criação de movimentos como o Leia Mulheres para fazer as pessoas se conscientizarem e orientarem suas leituras.

Se o mundo literário desse iguais oportunidades para todo mundo poder publicar e divulgar seus escritos, pensamentos e ideias, não seria necessário criar grupos de leituras que escolhessem obras exclusivamente de mulheres para ler. E a própria Fuvest reitera que não há necessidade para pânico, os homens voltarão para as listas, inclusive com obras de cunho fantástico, como Incidente em Antares, de Erico Verissimo. Quando uma entidade do porte da Fuvest investe em obras de autoras de língua portuguesa, ela sinaliza para o público que esta literatura existe e é importante. É um motivo para se comemorar.

O vestibular da Fuvest já teve 20 edições de listas literárias compostas exclusivamente por autores homens. E em nenhum momento houve editorial de grande jornal para reclamar, porque a literatura masculina é vista como universal, enquanto a literatura feminina é vista como de "nicho". Não foram poucas as autoras que precisaram publicar com pseudônimos ou ter que editar seus livros para caber no que os editores homens queriam. A própria Ursula K. Le Guin disse à Paris Review uma vez:

Escrever era algo para o qual os homens fizeram as regras e eu nunca questionei. As mulheres que questionavam essas regras eram muito revolucionárias para que eu pudesse até mesmo conhecê-las. Então, eu tive que me ajustar ao mundo masculino da escrita e escrever como um homem, apresentando apenas um ponto de vista masculino. Meus primeiros livros são todos ambientados em um mundo dos homens.

O que os protestos e cartas e reclamações demonstram é um ego frágil, uma efemeridade patriarcal que sempre surge quando uma mulher consegue maior projeção do que seus colegas homens. Por que estão todos tão nervosos com uma lista de livros que não pretende banir ninguém da existência? Em um país onde apenas 16% da população brasileira é consumidora de livros, tem escritores por aí reclamando de uma lista, bem, de leitura. É incongruente. Não apenas isso, é feio ver homens adultos dando piti, faça-me o favor.

Outro triste fato que fica evidente com as reclamações é que mesmo entre os escritores e professores brasileiros não há o costume de ler mulheres. Se eles conhecessem as autoras, conhecessem suas obras e as discutissem não apenas em sala de aula, mas também com seus pares e amigos, eles não teriam o que dizer das escolhas. Ainda há essa visão de que indicar uma obra exclui as outras do mesmo segmento. É o medo de perder a relevância, medo de dividir o parquinho com as coleguinhas. Mais ainda, é o medo de leitores se deparando com uma literatura que possa colocar a deles de volta na prateleira.

Houve ainda quem dissesse que a lista era excludente não apenas aos homens, mas também a outros gêneros. Meu anjo, toda lista vai ser excludente de alguma forma! Se eu faço uma lista de livros de ficção científica escritos por mulheres, estão excluindo os livros de fantasia, de terror, as biografias, os livros escritos por homens, as coletâneas de poesia, as obras de não-ficção e por aí vai... A Fuvest escolheu obras que estão estabelecidas, de autoras reconhecidas para trabalhar temas que vão desde os tipicamente femininos como aqueles universais, de maneira a desmistificar a literatura por mulheres. Uma lista de leitura não é lavrada em pedra, é um caminho, uma direção a se seguir. Ela não pretende mudar o currículo do ensino médio, até porque a maior parte dessas obras já está lá.

Em um mundo ideal, o fato de seus autores serem homem ou mulher não deveria ser tão ou mais importante do que a qualidade da obra. Mas dizer que uma lista apenas de autoras é excludente, quando houve 20 edições de listas literárias compostas exclusivamente por homens é negar a invisibilidade gritante que ainda figura entre as mulheres. E quando mais camadas nós colocamos, se a autora é negra, se é LGBT+, ou se tem deficiência, o manto da invisibilidade aumenta.

Quem lê sempre tem um gênero favorito. Mas quem lê também tem que estar disposto a ler de tudo. Por isso eu peço: leia mulheres, indique mulheres, resenhe mulheres. De todos os gêneros literários, de todas as épocas.

Eu diria à mulher inteligente (...) molha a pena no sangue do teu coração e insufla nas tuas criações a alma enamorada que te anima. Assim deixarás como vestígio ressonância em todos os sentidos.

Narcisa Amália

❥ Emprestei o título deste texto da honorável Conceição Evaristo e sua coletânea Insubmissas lágrimas de mulheres.

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Comentários

  1. Adorei o texto! Um cronista que escreve em jornalão cometeu um texto que rivaliza com as trombetas do Apocalipse sobre a lista da Fuvest só com escritoras. "Oh, não tem Machado, Drummond?". Mexeram no sacrossanto cânone literário e ainda para inserir só mulheres? "Lacração!!!"Que bando de mimados. Só com ironia para tratar disso e apontar a imaturidade de muito marmanjo escritor que, coitado, não admite perder os privilégios - como se as escolas fossem excluir Machado, Drummond, Alencar e etc. dos seus programas. Que tenhamos mais vozes e autoras feminas na literatura!

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  2. Li a treta do Twitter ( me recuso a chamar de X) e achei, sintetizando bem, um imenso chororô de quem não pode ceder o lugar nem um pouquinho.
    "Ain, estão tirando o direito das pessoas de lerem autores x e y".
    Me poupe, nos poupe, né?
    Como se as pessoas fossem obrigadas a ler apenas autores e autoras de uma lista específica de um vestibular.
    Achei uma polêmica forçada de um bando de mimizentos, mas que bom que rendeu boas respostas e textos como o seu, se posicionando e mostrando claramente o que está por trás dessa discussão.
    A escolha da frase de Conceição Evaristo para fechar seu texto foi certeira, pois também no Twitter teve um fio desprezando essa autora.
    Abraços!!!

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  3. Nossa, desmerecer uma pessoa pelo gênero dela é tão absurdo... Além de uma masculidade frágil, ainda fazem barulho para encher o saco de todo mundo.

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  4. Texto mais que necessário, capitã! Disse tudo e mais um pouco 👏👏👏

    Lhe desejo um feliz Ano Novo, boas festas, fique bem ♥

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