O futuro cyberpunk não é inevitável

No atual momento em que vivemos, quando você fecha os olhos, como imagina o futuro? Não posso ler mentes, nem adivinhar o que se passa na sua cabeça, mas posso supor que você vê estruturas injustas de poder de robôs e IAs, construídas e controladas por poucas corporações ou indivíduos poderosos. Deve ver uma natureza cada vez mais rara, um luxo para os poucos poderosos com condições de pagar por ela. Vê cidades cada vez mais desiguais, sujas, lotadas, com modernos arranha-céus, carros voadores e inteligências artificiais controlando tudo remotamente.

Pois é. Bem-vinda ao mundo cyberpunk. Porque todos esses cenários são tropos clássicos do cyberpunk, explorados em livros como Neuromancer e Carbono Alterado e em filmes como Robocop, Blade Runner e O Exterminador do Futuro.

O futuro cyberpunk não é inevitável

Cyberpunk é um subgênero da ficção científica caracterizado por anti-heróis da contracultura presos em um futuro desumanizado e de alta tecnologia controlado por poucas corporações ou indivíduos. A palavra cyberpunk foi cunhada pelo escritor Bruce Bethke, que escreveu um conto com esse título em 1982. Daí a palavra se popularizou e foi adotada pela cultura pop em livros, filmes, quadrinhos e videogames. Suas narrativas são frequentemente sobre domínio e controle entre ricos e pobres, corporações e mercado, humanos e robôs humanóides ou IA's. Cyberpunk é um mundo definido pela desigualdade sistemática e opressiva em uma definição muito precisa do mundo capitalista.

A retórica cyberpunk está em seu auge conforme o mundo debate sobre o uso e os perigos das inteligências artificiais. Já chegamos a um mundo muito semelhante em vários aspectos aos universos cyberpunks que lemos e assistimos, mas devemos nos perguntar: é esse mundo em que queremos viver? Um mundo pensado há meio século? Não temos condições de aprender com a cultura pop e pensar formas melhores imaginar um futuro para todas nós?

Não podemos fechar os olhos e pensar que as desigualdades vão desaparecer do dia pra noite, porque não vão. Entretanto, ficção científica é mais do que apenas entretenimento. Ela inspira o mundo real que habitamos. Há uma longa história de designers abraçando sugestões que viram na ficção científica: telefones de flip, carros autônomos e o metaverso, para citar alguns. Não faz muito tempo, vi uma matéria que mostrava três livros de ficção científica que inspiraram Elon Musk a construir seu império. Até que ponto esses mundos cyberpunks estão rodando em segundo plano na cabeça dos poderosos?

Cyberpunk é um gênero que gosto e consumo. Ele conquistou não só o mundo da literatura como também o do cinema. É provocante, é instintivo, mas explorar demais a visão cyberpunk é empobrecer o gênero em si e a própria ficção científica. Muitos outros mundos e gêneros foram criados capazes de inspirar líderes a pensar em um futuro diferente. É também perpetuar visões brancas sobre um futuro opressor que apenas reforçam narrativas de exclusão. Não é de hoje, por exemplo, que o cyberpunk é criticado por seu racismo e sinofobia.

No cyberpunk existe aquele racismo característico – a ideia de que a pior coisa que você pode ter no futuro é ter que viver como uma pessoa não-branca.

Tali Faulkner, desenvolvedora de jogos de ascendência Maori e criadora do jogo cyberpunk Geração Umurangi.

A forma como a Ásia é retratada na ficção cyberpunk moderna é mais como um adereço, em vez de um elemento inseparável da narrativa. Está lá apenas para parecer maneiro.

Mark Fillon, diretor criativo do jogo Chinatown Detective Agency

Em muitos sentidos, o cyberpunk cai na mesma armadilha de filmes sobre contatos alienígenas, mostrando que o que vem de fora, que é alien (estrangeiro) é uma ameaça, ressaltando as ansiedades do público a respeito. E esse é um traço muitas vezes incosciente, sendo algo que emerge através de processos de relações econômicas, do colonialismo, das diferentes tradições culturais e estéticas que estão disponíveis. Quando crises históricas se estabelecem, é preciso eleger um inimigo para aplacar o sentimento de impotência.

Por mais que roteiristas, escritores e desenvolvedores tenham boas intenções e sejam fascinados pela cultura asiática, muitos não estão cientes de que estão reproduzindo uma representação que é em si reciclada e estereotipada. A ficção em si é um recorte muito específico de algo, mas a escolha de representar este recorte de maneira que reforce estereótipos precisa ser evitada.

É possível pensar em enredos cyberpunks que não recaiam em estereótipos e racismo? Em seu sentido mais restrito, o gênero é sobre como as pessoas marginalizadas numa distopia tecnologicamente avançada encontram formas de vencer o sistema, quando é o sistema que impõe este tipo de males. É uma fusão de dois elementos: a interface entre a humanidade e as máquinas e o espírito rebelde e antiautoritário de grupos que lutam contra a opressão e a marginalização. Valendo-se dessa definição, quantas boas histórias cyberpunks poderíamos criar para rebater o cenário que se avizinha?

Até mais!

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Comentários

  1. Muito bom, acho que uma realidade comparável é inevitável, haverá resistência como toda grande mudança de humanidade. Talvez um momento que possa vir, seja o solarpunk, como um contraposto dos paradigmas do high-tech and low Life.

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