Como lágrimas na chuva...

Na história do cinema, existem algumas falas que se tornaram memoráveis. Dentro da ficção científica, uma das falas mais repetidas, decoradas e estudadas é a fala final do androide Roy Batty em Blade Runner. Acredito que ela é justamente aquele momento que prova que um androide pode ter mais humanidade do que um ser humano. A fala só existiu porque Rutger Hauer não gostou da versão original e ela demonstra uma humanidade quem nem mesmo Deckard demonstrou.

Como lágrimas de chuva...
Arte de Christopher Shy

Originalmente aquelas falas seriam bem diferentes. Blade Runner de Ridley Scott é considerado não apenas um dos melhores filmes de ficção científica, mas um dos melhores filmes de todos os tempos. Parte do significado cultural de Blade Runner é sua representação da inteligência artificial, bem como as atuações memoráveis de Harrison Ford, Daryl Hannah e Rutger Hauer. Considerado um dos papéis mais memoráveis de Hauer, Roy Batty é um replicante desonesto que se redime no final. Enquanto outro ator poderia ter trazido uma vilania de desenho animado para Roy, Hauer trouxe uma humanidade para ele que é exemplificada no famoso discurso 'Tears in Rain'.

No final de Blade Runner, Deckard (Harrison Ford) mata a namorada de Roy, Pris (Daryl Hannah). Isso inicia a tensa cena de perseguição entre Deckard e Roy, que termina em um telhado na chuva. Em uma das falas mais memoráveis da história do cinema, Roy salva Deckard de cair para a morte. Antes que seu corpo replicante morra devido à idade de fábrica, ele faz um discurso comovente a Deckard sobre a natureza temporária da vida. Roy poderia facilmente deixar Deckard despencar, mas ele decide mostrar bondade a Deckard.

O discurso final foi obra de Hauer, que adicionou a famosa frase, “como lágrimas na chuva”, sem o consentimento de Ridley Scott. Aliás, o ator pensou naquela cena como um androide e não como um ser humano. O texto original era muito longo, tal como o ator relatou ao jornalista Paul M. Sammon no livro Future Noir: The Making of Blade Runner, de 1996:

Se a bateria acabar, esse cara já era. Ele não tem tempo para dizer adeus, exceto talvez para falar na hora sobre as coisas que viu. Senti que o final deste filme deveria ser bem rápido. Assim, nós já vimos essa ópera de Replicantes moribundos. Então deixei Batty ser um cara inteligente por um segundo.

Em 1992, Ridley Scott disse à Starlog Magazine que a atuação de Hauer como Batty foi essencial para o sucesso do filme. Muito mais do que um simples arquétipo de monstro, como o que vimos em Frankenstein, de Mary Shelley, Batty demonstra uma humanidade maior do que a de muitos seres humanos. A empatia demonstrada pelo androide resignado com o fim de sua vida choca até mesmo Deckard, paralisado pela fala que emocionou até mesmo a equipe de filmagem em volta. Se Deckard não consegue se enxergar em um androide, Batty consegue se espelhar em um ser humano em um ato de infinita bondade e graça.

Se analisarmos Batty apenas por suas ações antes desta fala final, podemos incorrer ao erro de achar que ele é um vilão estereotipado. Que é mau apenas porque sim. A inteligência artificial dentro da ficção científica costuma ser mostrada sempre como algo a ser temida. O primeiro filme de O Exterminador do Futuro é a encarnação dessa figura robótica, artificial, sem qualquer simpatia pela humanidade.

Mas os androides de Blade Runner não são só torradeiras gigantes. Blade Runner 2049 nos mostra com mais detalhes como os cientistas comportamentais fazem para simular emoções nos androides: eles implantam memórias falsas em seus cérebros para que saibam como agir e como sentir. E uma máquina que pensa e sente também vai começar a questionar. Os androides da Tyrell Corporation não se conformam com a pouca vida de fábrica que receberam. Eles acreditavam que deveriam viver mais do que suas programações deixavam.

E este é um sentimento muito humano. Nossa vida é definida pelo fato de que um dia terá fim. Mas até lá temos todo um período para viver. Um androide foi feito para durar pouco, uma fração de uma vida humana, para não superar seus superiores. Aqueles que ousam desafiar suas ordens serão mortos por um Blade Runner, como Deckard. Que acaba tendo sua vida salva justamente por aquele que deveria matar. Se tem alguém que entende sobre a importância da vida, é justamente Roy Batty e seus amigos.

Assim como K, em 2049, Batty não obteve seu desejo de ter uma vida duradoura, mas pelo menos conseguiu ter algum tipo de redenção salvando Rick Deckard. São esses momentos fugazes, momentos que se perderão no tempo, como lágrimas na chuva, que tornam alguém de fato humano.

Roy Batty na chuva

Eu vi coisas que vocês nem imaginam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.

Até mais! 🌧️

Leia também:
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Comentários

  1. Muito bom o texto <3
    Eu amo essa cena, ela é linda e triste e sempre me deixa impactada não importa quantas vezes eu a tenha assistido (spoiler: foram muitas).

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