Este é um livro pequeno, mas carregado de reflexões, críticas e sentimentos. Ele reúne um conto pioneiro de W. E. B. Du Bois e um ensaio de Saidiya Hartman analisando o conto, a época em que foi escrito e as implicações que um desastre apocalíptico traria na vida de um homem negro no meio de uma das maiores cidades do mundo.
O livro
Jim era “um nada”. Trabalhando em um banco como mensageiro, ele observava as pessoas indo e vindo pela Broadway, sendo mais um anônimo, um homem negro perdido na metrópole, invisível por conta da cor de sua pele. As pessoas não o enxergavam. Quando começa a ouvir sobre um tal de cometa, Jim nem dá muita bola. Mas quando está voltando com os arquivos que seu chefe lhe pedira, Jim esbarrou no cadáver do escriturário do porão. Conforme sobe as escadas, encontra mais e mais corpos estirados pelos corredores. Na rua, a mesma coisa. Apenas corpos. E o silêncio ensurdecedor de um mundo agora emudecido.O cometa liberou gases tóxicos sobre a Terra, o que acabou matando as pessoas nas ruas e nas construções. Mas como Jim estava no porão, isso provavelmente salvou sua vida. Jim fica desesperado em um primeiro momento ao ver os corpos, ao sentir o silêncio da grande metrópole. Mas conforme anda e observa as vitrines de lojas que não o teriam atendido, ao ver o restaurante que nunca o teria servido, Jim se sente livre. Finalmente, após o fim de tudo, Jim se sente uma pessoa, um ser humano e pode agir e ser uma pessoa agora que não tem mais ninguém no mundo. Ou é o que ele pensa.
Ela não tinha notado que ele era um preto. Ele não pensava nela como branca. Era uma mulher de talvez vinte e cinco anos - particularmente bela e vestida com requinte, de cabelos louros e joias. Ontem, ele pensou com amargura, ela mal o teria olhado. Ele não passaria de um punhado de sujeira sob seus pés. Ela encarou-o. De toda sorte de homens que havia imaginado vir em seu resgate, não poderia sonhar com alguém como ele. Não que ele não fosse humano, mas habitava um mundo tão distante do dela, tão infinitamente distante, que raramente fazia parte de seus pensamentos.
Página 21
Nova York, que até então era quase inacessível para Jim, agora se torna uma cidade onde tudo parece ser possível. Não existem mais barreiras para um homem negro sem os brancos para impedi-lo de fazer qualquer coisa. Não há mais policiais brancos para barrar sua passagem ou para segui-lo. Julia, a mulher que ele resgatou de um prédio, também o enxerga de maneira diferente conforme o conhece melhor, conforme conta com ele para sua própria sobrevivência.
O cometa completou 100 anos em 2021. O conto foi publicado originalmente em uma coletânea, Darkwater, em 1920, e foi escrito num contexto de intensa segregação racial nos Estados Unidos. Difundida sob a ideologia da “regra de uma gota”, segundo a qual bastava um ancestral africano para alguém ser considerado negro, a miscigenação representaria uma ameaça para o povo branco, uma degeneração que deveria ser combatida.
Uma mulher branca e um homem negro, em um contexto pós-apocalíptico, poderia ser a salvação da humanidade? Seria o fim do mundo capaz de derrubar o racismo? No ensaio de Saidiya Hartman, depois do conto, ela se comenta sobre o cenário político e social da época em que O cometa foi publicado e como o conto funciona como uma sátira da democracia falida.
O jugo da supremacia branca parece tão invencível e tão eterno que só encontraria uma derrota garantida no fim do mundo, na morte do homem. Nem a guerra nem os direitos forma bem-sucedidos em devolver ao escravizado a condição de humano ou em erradicar o racismo. Na esteira do desastre, ao mensageiro, o último homem negro da Terra, será permitido viver como um ser humano pela primeira vez em sua vida.
Páginas 60-61
Se o conto parece super atual é porque pouco mudou de 1920 pra cá. Ao fazer conexões entre o conto e a pandemia de Gripe Espanhola e a da Covid-19, Hartman chama atenção para a violência contra a população negra nos Estados Unidos, dialogando com fenômenos contemporâneos como o Black Lives Matter e manifestações artísticas, como do filme Queen & Slim. É uma pena ser um livro tão curto e pequenino, ainda que carregado de conteúdo e referências bibliográficas no final.
A capa é de autoria do próprio Du Bois. O livro é pequeno, menos de 100 páginas e não há problemas de revisão ou diagramação nele. A tradução de André Capilé e Cecília Floresta está ótima.
Obra e realidade
W.E.B. Du Bois foi um intelectual norte-americano, um dos primeiros negros a obter um doutorado pela Universidade Harvard, além de ser autor de uma vasta obra sociológica e historiográfica, tendo escrito também poemas e três autobiografias. Du Bois se debruçava, principalmente, sobre uma questão: estudava e discutia as condições de vida da população negra nos Estados Unidos após a abolição da escravidão, em 1865.Além de ser uma obra do afropessimismo, movimento que descarta a possibilidade de reconciliação entre brancos e negros, tal como disse Hartman, o conto é uma sátira. Sabemos que as distopias exageram para evidenciar as desigualdades. Foi o que Du Bois fez, numa obra pioneira e ácida que parece muito próxima da realidade, porque a realidade não mudou.
William Edward Burghardt Du Bois foi um sociólogo, socialista, historiador, ativista pelos direitos civis, Pan-africanista, escritor e editor norte-americano.
Saidiya Hartman é uma escritora e acadêmica norte-americana cujo trabalho está focado nos estudos afro-americanos. É professora na Universidade Columbia.
PONTOS POSITIVOS
Jim
Cometa
Análise da realidade
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Curtinho
Jim
Cometa
Análise da realidade
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Curtinho
Avaliação do MS?
Leria facilmente qualquer coisa que Du Boies escreveu e tenho em casa Perder a mãe, de Saidiya Hartman já começado. Não vejo que outra escritora e pesquisadora seria mais adequada para falar da obra e do conto pioneiro de Du Bois do que ela. Um livro tão curto, mas tão cheio de significado e reflexões que precisei reler assim que terminei a primeira leitura. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! ☄️
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