Resenha: A República do Dragão, de R. F. Kuang

A Guerra da Papoula foi um dos melhores livros que li no ano passado. É uma fantasia baseada na cultura chinesa, com uma personagem que te conquista tanto que tem horas que você quer abraçar a garota e tem horas que quer sacudir pelos ombros. Depois de ser quase tragada pelo primeiro livro, fiquei com medo que este aqui acabasse sendo apenas intermediário. Mas eu mal sabia o que me aguardava...

Pode haver spoilers do primeiro livro!

O livro
O Império Nikara está em pedaços após a Terceira Guerra da Papoula. Rin também está em pedaços, destruída, sendo lentamente corroída pela culpa a cada tragada de ópio. Além do luto pela morte de Altan, líder do Cique (divisão com apenas xamãs em suas fileiras), Rin tenta viver com a voz da deusa em sua mente e os horrores que viveu e cometeu na guerra. Mergulhando no ópio, ela está irritada, com medo, insone, com raiva. A vingança a alimenta dia após dia, na esperança de matar a imperatriz.

Resenha: A República do Dragão, de R. F. Kuang

- Nossos mortos não nos deixam (...) Eles nos assombram por quanto tempo permitirmos.

Como ela não tem mais com um império ou com um exército com quem contar, Rin precisa se aliar com grupos e pessoas para poder sobreviver, como Moagh, a rainha pirata. Altan a colocara na liderança do grupo, mas nem Rin tem certeza de que sabe o que está fazendo. Essa é uma das características que eu mais gosto na personagem. Ela passa muito longe de ser perfeita, muito longe de ser uma protagonista sem defeitos, que faz tudo certinho. Se tem uma coisa que Rin faz e com frequência é errar e confiar em que não deveria.

Rin acaba se aliando ao líder da província do Dragão, pai de seu antigo colega de Sinegard, Nezha. Ele tem uma proposta que a faz confiar que algo pode mudar, que alguma coisa pode de fato mudar para os nikaras: ele propõe derrubar a imperatriz e instaurar uma república. E aqui entra uma discussão que Kuang trabalhou muito bem. Para conseguir o apoio militar necessário, o líder do Dragão convoca os hesperianos (imagine-os como uma delegação de europeus chegando à China medieval). Os hesperianos se interessam muito pelos xamãs, pois acreditam que o Caos é o causador das moléstias causadas neles. O Caos precisa ser banido do mundo, segundo eles, e só assim os povos terão paz. Rin concorda, muito a contragosto, a participar dos estudos de uma hesperiana, já que toda a aliança depende da cooperação nikara.

Os hesperianos representam o colonialismo, o fundamentalismo, os experimentos cruéis contra prisioneiros. Eles se consideram superiores (e até têm algumas tecnologias como armas de fogo), mas torturam Rin em busca de pistas sobre o Caos e não veem problema em matar. Tudo isso remete ao Massacre de Nanquim, evento que serviu de inspiração para os livros e que Kuan discute muito bem ao longo da narrativa.

Devia ser agradável ter tanto poder a ponto de tratar geopolítica como se fosse um jogo de xadrez, ficando à espreita para observar quais países mereciam ajuda e quais não.

Personagens do livro anterior retornam, cada um à sua maneria, tendo que lidar com as marcas deixadas pela Guerra da Papoula. Rin percebe que todo mundo carrega uma mácula, um trauma, mas ela está tão imersa no luto por Altan que não percebe coisas óbvias. É preciso esfregar na sua cara e torcer para que ela entenda que suas ações não afetam apenas a ela, mas a seus companheiros, que esperam dela uma liderança que Rin não acredita ter. O ópio é um problema, principalmente no começo do livro e lidar com a dependência foi uma das partes mais excruciantes de se acompanhar.

Se a Guerra da Papoula é um livro sobre guerra, A República do Dragão é um livro sobre as consequências da guerra. É sobre como o povo simples acaba sofrendo com as decisões dos poderosos, é sobre soldados morrendo, sobre sangue, sobre dor. Este segundo livro lida com o depois dos conflitos. Quem vai juntar os cacos de uma nação dividida? Em qual lado uma pessoa deveria estar? Rin chega a encontrar ex-colegas de Sinegard e se questiona se estava mesmo do lado certo.

Tem muita estratégia e planos de guerras no livro, então o ritmo é bem acelerado em vários momentos. Mesmo quando você pensa que tudo está muito parado, é porque essa pausa é necessária para o enredo. Entretanto, o livro é deliciosamente bem escrito. Com mais de 640 páginas, eu engoli o livro, incapaz de parar a leitura, porque tanta coisa acontece, me apeguei tanto a esses personagens, que eu levava o Kindle para a mesa na hora de comer porque não queria parar de ler. Tal como George R.R. Martin, Kuang não tem dó de seus personagens ou de suas leitoras.

E por falar em ter dó... Aquele final me destruiu. Kuang enfiou uma faca nas costas de cada leitora que acompanhou aquele livro desde o começo, que sofreu com seus personagens, que lamentou junto deles, que lutou ao seu lado. Eu não esperava por nada daquilo e no fim fez total sentido ter acontecido. Assim que o livro terminou, eu me pegava reclamando de mim mesma por não ter reparado nisso, por não ter nem pensado que tal coisa pudesse acontecer. A autora dá momentos preciosos de felicidade para os personagens, para depois massacrar nossos corações sem qualquer piedade.

E quando nações começam a acreditar que outras crenças levam à danação, a violência se torna inevitável.

Li o ebook e não o livro físico, mas senti que a edição precisava de uma melhor revisão. Às vezes, uma palavra mal colocada tornava difícil a compreensão de alguma frase. A tradução foi de Helen Pandolfi e Karine Ribeiro e está ótima.

Obra e realidade
Uma das inspirações para o livro foi o Massacre de Nanquim. Também conhecido como o Estupro de Nanquim, foi um assassinato em massa e estupros em massa cometidos por tropas do Império do Japão contra a cidade de Nanquim, na China, durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, na Segunda Guerra Mundial. Na época, Nanquim era a capital chinesa e o massacre ocorreu ao longo de seis semanas em 1937. Estima-se que entre 40.000 a 300.000 pessoas foram mortas. A forma como Kuang descreveu um massacre similar nos dá uma ideia de como o povo chinês ainda não se curou dessa ferida. Entre 1935 e 1945, os japoneses conduziram testes cruéis com mais de 200 mil pessoas no de prisioneiros na China conhecido como Unidade 731

Rin também sofre preconceito devido à pele escura. Várias vezes seus colegas comentam sobre sua pele, como ela parece caipira e deslocada na capital do Império Nikara. Existe um preconceito dentro do próprio país com chineses de pele mais escura. Não apenas com chineses cuja etnia é mais próxima da Mongólia, como também é uma questão social, já que apenas trabalhadores braçais possuem pela escura pela exposição ao sol. Rin é obrigada a ouvir tudo isso e ainda lutar contra o preconceito dos colegas.

A autora comentou em uma entrevista sobre algumas mensagens de leitores que nunca ouviram falar no Massacre de Nanquim. Eu mesma nunca aprendi isso na escola ou na faculdade. Esses leitores sabem sobre o Dia D, mas dificilmente leriam a respeito de um massacre ocorrido na China. Só por levar a discussão aos leitores, por falar sobre a violência nas guerras e sobre traumas em seu povo, o livro já vale muito.

R. F. Kuang

Rebecca F. Kuang é uma escritora de fantasia sino-americana.

PONTOS POSITIVOS
Rin
Bem escrito
Universo grande e bem construído
PONTOS NEGATIVOS

Gatilho para estupro e violência


Título: A República do Dragão
Título original em inglês: The Dragon Republic
1. A Guerra da Papoula
2. A República do Dragão
3. A deusa em chamas
Autora: R. F. Kuang
Tradutoras: Helen Pandolfi e Karine Ribeiro
Editora: Intrínseca
Páginas: 640
Ano de lançamento: 2023
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Que livro! Não, sério, que livro! Eu não conseguia parar de ler. É impossível deixar o livro de lado. Tanta coisa aconteceu aqui, vivi tanto, caminhei, chorei, junto desses personagens que na hora de terminar a leitura eu esperava que existissem mais páginas. É um livro brilhante e acredito que essa trilogia já é um novo clássico da fantasia. Cinco aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais! 🐉

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Não vejo a hora de ler essa sequência, já sinto que ficarei desidratada
    amei demais o primeiro

    https://saidaminhalente.com/

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