The Last of Us e as distopias

The Last of Us é um sucesso estrondoso e a melhor adaptação de um videogame para as telas. Muitos nem acreditavam ser possível que um videogame pudesse se dar tão bem com fracassos seguidos de nomes grandes como Super Mario Bros. e Resident Evil. Na série, o fungo Cordyceps, que antes infectava apenas formigas, passa a infectar seres humanos, o que acaba levando um mundo violento e destruído, onde o medo reina diariamente na vida das pessoas.

The Last of Us e distopias

Distopia
Uma distopia é um lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; uma antiutopia. Enquanto hoje ela pareça ser um elemento básico de tantas produções literárias e cinematográficas, no final do século XIX reinava o otimismo, com possibilidades tecnológicas ilimitadas, trazendo o progresso para humanidade. Autores arriscavam visitar o futuro onde viam o fim da pobreza, da miséria, das doenças, governos benevolentes. Tudo isso era um reflexo do momento em que aqueles autores viviam, a Belle Époque.

Os horrores perpetrados pela Primeira Guerra Mundial botaram um fim a esta visão otimista. O que viram foi a guerra mecanizada, industrializada, gerida por um Estado burocrático que destruiu a sensação de progresso sem fim do final do século XIX. Não tardou para a literatura responder a estes novos receios. Em 1924, Nós, de Ievguêni Zamiátin, obra que influenciou 1984, de George Orwell, fala de uma sociedade totalitária onde os prédios são transparentes, a polícia secreta está sempre de vigília, o sexo é controlado pela burocracia e as pessoas têm códigos alfanuméricos em vez de nomes.

Conhecemos dezenas de enredos que seguem a fórmula distópica e há quem diga que a ficção científica não consegue mais repetir o otimismo técnico-científico da era de ouro (o que eu discordo). É fácil, porém, entender porque as distopias se multiplicaram tanto nos últimos tempos, principalmente na televisão: elas são um reflexo das ansiedades e medos que a sociedade nutre contra aqueles que estão no poder.

Uma coisa bem evidente assim que começamos a assistir The Last of Us é que o governo não parece disposto a ajudar a população. Logo no episódio piloto, um soldado recebe ordens de matar Joel e sua filha, Sarah. Este mesmo governo evacuou cidades pequenas para enviar as pessoas para zonas de quarentena, mas caso soubessem que não havia espaço para mais gente, tinham ordens de executar os sobreviventes, cujos ossos despontam da terra vinte anos depois.

As zonas de quarentena são administradas por uma agência do governo chamada FEDRA, um misto entre a Guarda Nacional e a Agência Federal de Emergências dos Estados Unidos. Há escassez de alimentos, de remédios, de equipamentos, como baterias, e os agentes são corruptos, agressivos e odiados pela população acuada entre a opressão da agência e o pavor dos contaminados do lado de fora, para os quais nem há vacina.

A mudança
As distopias são produtos do estresse e dos medos de seu tempo. De 1984 e Admirável Mundo Novo pra cá, nossa percepção sobre o que é um mundo distópico mudou radicalmente. As obras de Orwell e de Huxley imaginavam governos autoritários que abusavam da tecnologia para obter o controle máximo sobre a população, controlando até mesmo sua forma de pensar.

Nos anos 1980, O Conto da Aia retratou a teocracia absurdamente eficiente construída em torno do controle dos corpos das mulheres e a junção de religião com Estado. Arquivo X mostrou um governo secreto, dentro do governo oficial, que rastreava seus cidadãos por meio de vacinas e maquinava com alienígenas a próxima extinção humana. Jogos Vorazes se passa em um mundo pós-escassez que suprimia a insatisfação de seus distritos, disfarçando uma execução em massa em uma celebração nacional onde apenas um jovem saía vitorioso, enquanto a população dos distritos mais pobres morria de fome e de frio.

As distopias já refletiram nossa preocupação com um governo brutal e terrivelmente tecnocrático. Porém agora, nossa preocupação é com algo ainda pior.

Nas distopias do passado, o governo é o grande vigilante, o mentor capaz de maquinações complicadas, burocracias complexas e subterfúgios inteligentes, sempre presente, sempre em guarda, onisciente de cada passo de seus cidadãos. Recentemente, entretanto, houve uma mudança na forma como o governo é encarado. Bem antes da Covid-19 pegar o mundo de surpresa, séries e videogames, quadrinhos e filmes mostravam um governo despreparado, ineficaz e incapaz de impedir que os violentos cenários distópicos recaiam sobre a população.

Em The Last of Us este é exatamente o cenário que encontramos. Exacerbado pelas características dos fungos, o que restou dos grupos humanos precisa se arriscar do lado de fora ou ser oprimido pela FEDRA dentro das zonas de quarentena. A visão de um governo poderoso e brutalmente eficaz deu lugar a um governo incompetente, corrupto, ausente, que falha em proteger seus cidadãos e exemplos dessa ineficiência da vida real não faltam, como o desastre de Chernobyl, o 11 de Setembro, o furacão Katrina, os surtos de SARS, MERS e Ebola (e agora a própria Covid). A Agência Federal de Emergências levou 11 dias para levar água potável para o estádio em Nova Orleans onde estavam milhares de sobreviventes do Katrina. Onze dias!

É natural que eventos como esse acabem inspirando a ficção. Se uma agência do governo não consegue executar um plano de ação em um desastre natural, o que poderá fazer no apocalipse? Com as mudanças climáticas globais, exemplos como o do Katrina serão cada vez mais comuns. E em algumas obras o desastre ambiental se torna a desculpa perfeita para a instituição de uma teocracia. Em O Conto da Aia, os Estados Unidos desaparecem para o surgimento da República de Gilead, uma ditadura religiosa onde um grupo de mulheres em idade fértil é enviado para as casas de altos oficiais do governo para serem estupradas e assim fornecerem bebês saudáveis para a classe dominante.

Cena da série The Handmaid's Tale

No livro de 1993 de Octavia Butler, A Parábola do Semeador, o mundo passa por uma crise ambiental, com recursos esgotados e um clima imprevisível. O governo até tenta, mas não consegue controlar o caos, cedendo o trabalho de cuidar da população a entidades privadas as quais muitas pessoas não podem pagar. Aqui temos uma noção bem nítida de que o governo escolheu deixar de apoiar a população, encolhendo até deixar de ter qualquer relevância nas vidas das pessoas.

Também em The Last of Us, as catástrofes instigadas pelo governo se acumulam, em grande parte porque ninguém atende aos avisos. A série começa em um flashback da década de 1960, quando um cientista prevê que, se a temperatura da Terra subisse alguns graus, um fungo que infecta o cérebro das formigas poderia sofrer mutação para sobreviver no corpo humano. Mas assim como em outras produções, como no filme Contágio, em The Last of Us a forma capitalista de se viver tem grande parte no desastre que está por vir. Isso porque as forças descontroladas do comércio global ajudaram a tornar possível o surto: supervisão frouxa, verificações de fronteira porosas, falta geral de controle de qualidade. O fungo mutado entra para a cadeia global de alimentos e infecta as pessoas. O verdadeiro vilão é o capitalismo descontrolado e o comércio globalizado.

Talvez a coisa mais assustadora desses cenários mais recentes é a sensação de que ninguém pode nos salvar. Enquanto nas distopias clássicas um dissidente ou anti-herói pode ser revestido de poder por uma resistência que derrubará o governo corrupto e ineficiente, enredos como The Last of Us nos mostra que não há insurgência, nem herói corajoso o suficiente que possa lidar com um fungo, com um vírus, contra uma bactéria.

Não há soluções fáceis para cenários tão temíveis. Mas uma coisa que funciona em qualquer cenário é o trabalho coletivo. Ou as pessoas trabalham juntas para sobreviver ou não haverá amanhã para nenhum de nós. Reprimir não é a saída e sim a cooperação.

Até mais!

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