Resenha: Beco do Rosário, de Ana Luiza Koehler

Milton Santos, o grande geógrafo e intelectual brasileiro, dizia que uma paisagem e espaço, como uma cidade, são sempre uma espécie de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes gerações se superpõe. Aquele antigo bairro industrial se torna um bairro de classe média com shoppings e mercados nos prédios das velhas fábricas, criando sobreposições de elementos de diferentes épocas. O que Ana Luiza Koehler faz em Beco do Rosário é mostrar esse grande palimpsesto que é Porto Alegre por meio de um belíssimo quadrinho.

O quadrinho
Esta é uma Porto Alegre da década de 1920, num momento de intensa modernização. Começamos nossa jornada com Vitória, moradora do Beco do Rosário, uma jovem negra de grandes ambições e talento para a escrita que sonha em ser jornalista. Entretanto, ela enfrenta uma sociedade machista, racista e que não vê com bons olhos uma moça tendo tanta ambição. Vitória é a primeira de uma série de personagens que veem sua vida entrelaçada com o desenvolvimento de Porto Alegre, cuja expansão foi marcada desigualdade social e pelo racismo. Derrubar os becos e desalojar seus moradores era uma forma de “europeizar” a cidade, processo que aconteceu em outras capitais, como em São Paulo.

Resenha: Beco do Rosário, de Ana Luiza Koehler

Um amigo de infância de Vitória é Teo, jovem branco vindo de uma família rica de imigrantes que volta da Europa formado engenheiro, com a cabeça cheia de ideias para a capital gaúcha. Fabrício é um jovem artista negro que não é valorizado no mercado. Ana Luiza se vale das vivências desses personagens fictícios firmemente baseados no contexto da época e frutos de uma extensa pesquisa histórica para construir o enredo que tem como Porto Alegre sua principal personagem.

O enredo de Beco do Rosário pode decepcionar aqueles que esperam um quadrinho de ação. A protagonista desta história é Porto Alegre e a forma como sua paisagem mudou no começo do século XX com o surto de modernização e urbanização que as metrópoles sofreram. Os personagens citados são vetores para as transformações pelas quais Porto Alegre passa, pois terão suas vidas impactadas por tais mudanças. Quando uma família é expulsa do centro e precisa morar longe de um local de trabalho, as dinâmicas sociais, econômicas, familiares, afetivas também se transformam.

Por meio de saltos temporais acompanhamos o crescimento dos personagens, suas vivências, a forma como suas vidas vão se entrecruzar com a urbanização da cidade e com os eventos que levarão à destruição dos becos e vielas. Por mais que os personagens sejam fictícios, consegui ver claramente como as reações, as lágrimas, as amarguras podem ter sido reais por meio das expressões faciais e os ricos traços de Ana Luiza, trazendo um rosto para aqueles desconhecidos que viram impotentes a transformação acontecer.

Beco do Rosário

O quadrinho é belíssimo, todo em aquarela, com uma riqueza de detalhes desconcertante. É preciso parar em cada página para absorver a riqueza dos cenários, das roupas, dos móveis, das expressões dos personagens, da intensidade de seus olhares. Tudo está em harmonia, desde a escolha das cores até a composição dos quadros. Não há maneira mais didática de se falar de urbanização e exclusão social do que mostrando e por mais que os textos acadêmicos se esforcem, falta a questão humana, a pauta voltada às pessoas, que é o que Ana Luiza conseguiu fazer aqui.

Beco do Rosário se baseia na dissertação de Ana Luiza sobre os becos de Porto Alegre, que você pode acessar pelo link do repositório digital da UFRGS. Acredito que o único ponto negativo deste quadrinho é o fato de que ele termina! E talvez o fato de vir em capa comum com uma tendência a dar uma entortada. Espero que no futuro próximo a edição ganhe uma capa dura tão linda quanto seu conteúdo. Não há problemas de diagramação ou revisão. Eu leria facilmente qualquer coisa que Ana Luiza Koehler escrevesse e ilustrasse, até bula de remédio.

Beco do Rosário


Obra e realidade
Muitas cidades pequenas e provincianas brasileiras viram suas áreas urbanas se desenvolverem num salto no começo do século XX. E Porto Alegre não foi diferente. Assim como São Paulo, a capital gaúcha tinha vilas, becos e bairros pobres em região de grande interesse social. Para abrir as grandes avenidas de inspiração europeia, muitas construções vieram abaixo, desalojando os mais pobres para franjas periféricas e longe das regiões centrais.

Beco do Rosário me fez lembrar da abertura das grandes avenidas do centro de São Paulo, a Rio Branco e a São João, onde cortiços ocupados por pessoas pobres, descendentes de escravizados, migrantes de outros estados, foram demolidos e as pessoas expulsas da região central altamente valorizada e cobiçada. O bairro da Brasilândia, na zona norte da capital paulista, começou assim. As pessoas foram estimuladas a comprar lotes neste bairro até então distante e de difícil acesso, ganhando tijolos, telhas e uma porta para a construção de uma casa. Só esqueceram de avisar que eram terrenos de difícil construção devido à inclinação natural da Serra da Cantareira.

Ana Luiza Koehler

Ana Luiza Koehler é uma quadrinista e arquiteta brasileira.

Pontos positivos
Porto Alegre
Bem escrito
Bem ilustrado
Pontos negativos
Acaba logo!
Capa comum


Título: Beco do Rosário
Autora: Ana Luiza Koehler
Editora: Veneta
Páginas: 112
Ano de lançamento: 2020
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Beco do Rosário é o tipo de quadrinho que não pode faltar na prateleira de todo fã do gênero. Baseado em uma extensa pesquisa histórica, não apenas é uma obra de arte colorida e vívida como também um documento sobre a desigual urbanização de Porto Alegre, um registro que também serve de exemplo para outras capitais do Brasil que também passaram pelo surto de desenvolvimento do começo do século XX. Com personagens cativantes e uma arte maravilhosa, é um quadrinho praticamente perfeito. Cinco aliens para o livro e uma forte indicação para você ler também!

MARAVILHOSO!

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Arte linda. Estou louca pra ler Beco do Rosário já faz um tempão!

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  2. Que coisa linda essas ilustrações em aquarela! Imagino que deva ser ainda mais curioso/interessante para quem mora em Porto Alegre, né? Ir reconhecendo os lugares à medida que a leitura avança... Amei a dica!

    Não Me Mande Flores

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