Ficção especulativa: o folclore da Nova Era

Sempre que uma adaptação de alguma grande obra chega aos cinemas ou às TVs, alguma grande discussão surge a respeito. Por um momento vamos ignorar os preconceituosos e focar no medo legítimo de que essas obras saiam muito diferentes do material original e vamos ignorar também o fato de que livro, TV e cinema são mídias diferentes, com movimentos diferentes. O foco aqui é o motivo para essas discussões. O que leva os fãs a ficarem tão apreensivos com um livro, uma saga cinematográfica ou uma franquia da TV que ganham expansões ao material original? A resposta pode estar no medo de deturpar o material original, que já ocupa uma posição de mito. Estes trabalhos se tornaram o folclore da Nova Era.

Ficção científica & Fantasia: o folclore da Nova Era

Duas coisas me motivaram a escrever esse texto. A primeira são as reações inflamadas sobre a série Os Anéis do Poder, do Amazon Prime, e sua visão sobre a Segunda Era da Terra Média. E a segunda foi este texto do jornal O Globo sobre a ineficiência da ficção dita "séria" para falar de mudanças climáticas, já que ela está presa a conceitos do século XIX. Não sou especialista em realismo, mas entendo o suficiente de ficção especulativa (ficção científica, fantasia e terror) para dizer que concordo com o texto e vou além: a ficção especulativa é o folclore da Nova Era.

Do ponto de vista antropológico, psicológico e filosófico, a ficção especulativa e seus subgêneros constituem uma parte significativa da mitologia moderna, tanto para os leitores individuais quanto para a sociedade. Ela serve como uma plataforma para a exploração das grandes questões que a humanidade enfrenta desde tempos imemoriais. Os acadêmicos demoraram muito tempo para compreender o valor que tais gêneros possuem para a literatura e/ou para a mídia como um todo. Rotulada de "escapista", estes gêneros acabam por incorporar mitos e arquétipos em suas histórias, criando uma conexão emocional com seus apreciadores, mesmo que envolvam personagens, lugares e eventos inexistentes.

Segundo o folclorista e professor universitário Alan Dundes, o folclore é um fenômeno que engloba desde os contos de fadas, as canções de ninar, os "causos" do interior, músicas e histórias orais, indo para Peter Pan, O Senhor dos Anéis, Star Trek e até mesmo as piadas cotidianas. Mas, além disso, as lendas, os feitos dos deuses e a própria mitologia constituem a base do folclore, ocupando o mesmo espaço na sociedade. A ficção acaba por reutilizar os mitos e criando novos arquétipos baseados neles - vide Frankenstein - tratando de temas importantes usando cenários e personagens dentro da ficção especulativa.

Já li muitos relatos de como obras ficcionais ajudaram pessoas a passar por momentos difíceis. A ficção científica, por exemplo, é minha ficção de conforto. Se eu não encontrar nada novo pra assistir, vou lá e dou play em alguma série de Star Trek ou em Babylon 5, quem sabe rever aqueles episódios favoritos de Stargate SG-1. Os universos ficcionais nos trazem alento e esperança em momentos difíceis, assim como os mitos de eras passadas serviram como constituintes básicos de suas sociedades. Além disso, a ficção especulativa (ou de gênero) não se limita a emular mitos: ela toca nos mesmos arquétipos cujo único canal por muito tempo foi a mitologia.

Se olharmos para a ficção especulativa por esse viés, fica fácil entender porque tanta gente se inflama com novas produções. É como ter seu próprio universo mexido e tocado, ter aquele arquétipo que te define sendo invadido por estranhos que parecem não entender o que aquilo significa para você. Mas aí é que entra a pegadinha. Cada um entende um universo ficcional de maneira pessoal, então todas as reações serão pessoais. Mas uma nova produção não tem qualquer intenção de "acabar com a sua infância" e sim atrair mais gente para aquele universo, para torná-lo maior e mais representativo. O mito estará sempre lá e quanto mais gente lembrar dele, se importar com ele, mais tempo ele permanecerá vivo. Transferimos para os mitos, desde tempos ancestrais, nossos desejos, ansiedades, medos e alegrias.

As mitologias oferecem a culturas e indivíduos uma maneira de explorar as questões emocionais e éticas mais profundas da humanidade sem complicações políticas, sociais ou filosóficas. (...) No entanto, essa descrição de mitologias também se aplica à ficção científica moderna e às histórias de ficção fantástica. A ficção científica também nos permite explorar o universo e possíveis futuros além dos limites científicos normais e das leis da natureza, conforme prescrito pelos atuais paradigmas da ciência.

James E. Beichler

Digo desde o começo deste blog que considero a ficção científica (e todos os outros gêneros da ficção especulativa) um gênero completo, porque ele é capaz de falar de qualquer coisa, de trabalhar qualquer assunto. O escritor indiano Amitav Ghosh em seu novo livro, O grande desatino: Mudanças climáticas e o impensável (editora Quina, 2022) afirma que a assim chamada “ficção séria” não teria condições de falar sobre certos temas, como as mudanças climáticas, devido às limitações do próprio gênero preso ao realismo do século XIX.

O realismo ficou conhecido pela sobriedade e por ter expurgado de suas páginas tudo o que fosse visto como inverossímil, improvável. Na tentativa de refletir a vida burguesa e seus desatinos, ele se limitou a falar de eventos que são cotidianos, deixando de lado os extremos. Diferentemente das poesias épicas, que misturavam os universos dos deuses com o dos humanos, como A epopeia de Gilgamesh ou o Kalevala, o realismo delimitou o espaço e o tempo de seus fenômenos, excluindo elementos externos, vistos como "irreais". Para Gosh, um romance realista jamais conseguiria falar sobre um evento climático extremo, pois para ele o realismo resulta na ocultação do que é real.

Falkor

Muito curioso... Falam que a ficção especulativa é escapista, é boba, tirinho, porrada e bomba, quando na verdade o realismo é que parece ser limitado. Enquanto isso, a ficção especulativa constitui o folclore da Nova Era, baseando-se nos mitos e arquétipos de antes, recontando histórias que ainda são significativas. Precisamos dessas histórias, precisamos destes mitos, pois eles dão estrutura ao universo. Tal como os povos se reuniam ao redor de uma fogueira para ouvir o bardo declamar os poemas épicos, nos reunimos diante da TV para acompanhar elfos e rainhas, capitães e suas naves, navegando em busca de aventuras.

Até mais! 🌙


Leia mais:
Folklore of the New Age: Fantasy and Sci-Fi - Lucy Melocco
Science Fiction as Mythology - Thomas C. Sutton e Marilyn Sutton
Muggles, Matrix and Silmaril: The Pride of Modern Mythology - James E. Beichler


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Comentários

  1. Olá capitã,

    Esse é um texto realmente incrível. Não conhecia esse artigo do Globo, e gostei do diálogo entre seus pensamentos e o do colunista.

    Sempre achei incrível a Ficção Científica (e especulativa), por motivos muito parecidos com os seus. Como Geógrafos que somos (e eu na Arqueologia e você na Paleontologia), é muito fácil transitarmos para outras configurações de mundo. Como era o mundo antes das angiospermas, no estranho Paleozoico? E o mundo glacial do Cenozoico?

    Assim, muitos dos meus textos, mesmo eu tentando evitar, possuem uma construção de mundo que pese para a "paisagem", mas não meramente descritiva.

    Na escola li todos os clássicos "de vestibular", mas sempre achava que faltava algo mais imaginativo. Na minha cabeça mirim eu já queria era saber de exoplanetas (sem saber esse nome). Aí, descobri a literatura especulativa - como muitos de minha geração - via Harry Potter, Senhor dos Anéis, Crônicas de Nárnia... Nesses livros, a paisagem até está presente, mas nunca é um personagem ativo. Foi só na ficção científica - e nem lembro qual foi o primeiro livro do gênero que li - que eu consegui ver a Natureza como algo participativo da história, o que na minha visão de mundo, é vital.

    Gostei muito que o texto do Globo trouxe autoras e autores nacionais, para eu dar uma olhada.

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  2. Então.... Eu leio bastante sobre história, mas foi só lendo alguns autores de fantasia e ficção que conseguir entender (ou traduzir para dentro da minha percepção) o PESO, a dor por de trás de certos acontecimentos. Colonialismo, por exemplo, enquanto conceito é ruim porém abstrato, foi lendo Floresta é o nome do Mundo que consegui ter uma dimensão do quanto, do quanto de colonizador temos dentro de cada um. Acho Le Guin e Octavia Butler particularmente efetivas nesse sentido.
    E outras leituras, que são provocativas? Que incomodam, que te deixam pensando, que te cutucam em momentos aleatórios e vão ao pouco te fazendo ver o quão limitada é a tua visão? A ficha que cai sobre determinado livro anos depois? Os recursos que os livros te emprestam nos momentos mais difíceis? Que te impulsionam a procurar e a criar respostas porque as que existem não são suficientes?
    Eu acho que quem diz que ficção é escapismo não leu ficção o suficiente. Nem tudo na vida precisa ser explicito e literal para ser efetivo. Adorei a sugestão do artigo pela quantidade de autores nacionais! Vou pesquisa-los!

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    Respostas
    1. O que você escreveu é bem importante. Às vezes as verdades só ficam evidentes quando são apresentadas em um enredo ficcional. Sinto que quando estudamos um fato, como a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os fatos frios nos distanciam do evento. Mas se lermos uma alegoria da guerra num enredo de fantasia, com tropas e governos totalitários, parece que o envolvimento emocional é maior, já que os personagens acabam nos conquistando, nos importamos com eles.

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