Como Arquivo X mudou a televisão para sempre

A galera fã de ficção científica da minha geração com certeza se lembra de Arquivo X, Mulder e Scully, o Canceroso, aliens e todos os monstros da semana de nove temporadas na FOX nos anos 90, certo? Lembro de começar a assistir por indicação de uma colega do colégio e logo a série me fisgou com tudo. Mas além de ser uma série instigante, um misto de série policial com Além da Imaginação, outros fatores a tornaram marcante o suficiente para mudar a televisão para sempre e influenciar as produções que ainda assistimos.

Como Arquivo X mudou a televisão para sempre

Lembro de assistir a um especial sobre Arquivo X na FOX entrevistando fãs famosos da série, como David Grohl, e de vê-los tão animados quanto eu. Se em 1993, ano da estreia, ninguém sabia quem ou o que eram os Arquivos X, no ano seguinte a série já era um sucesso estrondoso. A FOX não acreditava que um enredo misterioso, mexendo por vezes com o impossível, mas sendo tratada como ciência séria e investigativa, pudesse segurar os telespectadores por muito tempo e começou a cobrar mudanças no enredo no final da primeira temporada. Chris Carter, por sua vez, não arredou o pé e disse que não mudaria os rumos da série.

Mas o que tornou a série esse sucesso definidor dos rumos da televisão?

O contexto da época
No começo dos anos 1990, uma franquia de ficção científica dominava a televisão: Star Trek. Séries consideradas de nicho tinham dificuldades de estrear pela audiência dos programas de Gene Roddenberry. Nem todo mundo queria arriscar. Quando Chris Carter foi contratado pela FOX para conceber um novo programa de televisão no começo dos anos 1990 ele já sabia que enfrentaria uma pedreira para conceber algo que cativasse o público. Desde o ínicio, Carter queria uma concepção mais sombria para sua produção, algo que mexesse com as crenças do público norte-americano.

Carter tinha lido que cerca de 4 milhões de norte-americanos acreditavam ter sido abduzidos por alienígenas. Juntando isso ao escândalo de Watergate, ao fato de estar de saco cheio de trabalhar em comédias e sendo um grande fã da curta série Kolchak: The Night Stalker, Carter juntou tudo em um projeto piloto que escreveu ainda em 1992. Curiosamente, Kolchak fala de um detetive que investigava crimes misteriosos, em especial envolvendo o sobrenatural, criaturas fantásticas e ficção científica.

Inicialmente a FOX rejeitou o piloto de Carter. Mas ele sabia que havia um público carente de enredos de mistério devido ao sucesso de Twin Peaks. Foi mirando neste público que ele concebeu a reescrita do piloto de maneira a conseguir o OK do estúdio, mas Carter conseguiu atrair espectadores que talvez não tivessem um interesse em ficção científica e alienígenas. O que fisgou o público geral da televisão da época foi a conspiração governamental para ocultar a presença de alienígenas na Terra, algo que atiçava a curiosidade da população desde o caso Roswell.

Arquivo X entregava episódios estranhos em um pacote familiar e bons roteiros. A série é um drama policial que usa ciência e investigação para desvendar casos sobrenaturais e misteriosos. A presença elétrica de David Duchovny e Gillian Anderson em tela e o fato de não serem amantes e sim funcionários públicos dedicados lutando contra o sistema, alimentavam a imaginação do público e cativavam aqueles fãs de sobrenatural, fãs de thrillers policiais e fãs de ficção científica.

O monstro da semana
Arquivo X tinha, de fato, um monstro da semana, não apenas alienígenas. A imagem dos aliens já estava cristalizada na mentalidade do público na época do piloto da série, mas o cidadão comum, ainda que tivesse certo interesse no paranormal ou em ETs, não pesquisava ou ia a fundo em teorias de conspiração. Estamos numa era pré-internet, portanto a informação era bem menos acessível. Arquivo X jogou um holofote sobre vários mistérios sombrios, trazendo histórias populares para a casa das pessoas e tratando-as como verídicas, como o Chupacabra. Aliens, mentalistas, vampiros, monstros comedores de fígados e cérebros, lobisomens, golem, fungos alucinógenos, bonecas demoníacas, o bicho-papão, todos eles tiveram seus momentos mágicos nas telas.

Uma coisa que Arquivo X fazia muito bem era pegar uma entidade que podia parecer banal, como o bicho-papão, e transformar a criatura em algo verdadeiramente apavorante. No episódio "X-Cops" (T7 E12), por exemplo, não vemos o monstro em nenhum momento, mas o pavor que ele causa nas pessoas é real, pois cada pessoa vê seu medo mais profundo e teme por suas vidas. Valendo-se da estética dos programas que acompanhavam o trabalho policial de verdade, esse é um dos trunfos da série, a de não ter medo de ser popular ou de trazer algo considerado batido e renovar o interesse.

Uma característica interessante de Arquivo X é que ele combinou dois tipos de narrativa para dar vida ao programa. Aliado com a complicada história de Mulder com sua irmã sequestrada e as várias conspirações governamentais, há um tipo de enredo bastante simples, que é o do monstro da semana. Ter Mulder e Scully resolvendo esses problemas do dia-a-dia dá uma veracidade à série, já que não se concentra em um evento específico por muito tempo.

A vida real é esse monte de momentos separados do dia a dia, e talvez em algum momento a gente possa se deparar com algo incrível. E assim, Mulder e Scully faziam seu trabalho, dia após dia, e lentamente juntavam as peças do quebra-cabeças em um esforço para resolver o problema e até encontrando mais problemas ao longo do caminho. A série normalizou o absurdo e abriu um precedente para várias que viriam nos anos seguintes.

Conspiração
A Guerra Fria terminou oficialmente em 1991, apenas dois anos antes da estreia da série. À medida que os Estados Unidos se reorientavam nesse período, começaram a surgir desconfortos da parte da população com algumas políticas do país. Os escândalos da era Reagan alimentaram uma desconfiança no público que Arquivo X usou para surfar na crista da onda da audiência. Chris Carter capturou a paranoia dos espectadores e a impulsionou com episódios sombrios mostrando vagões de trem sem identificação realizando cirurgias em extraterrestres, reuniões secretas de altos oficiais de agências governamentais e arquivos com amostras de pele da época da vacinação contra a varíola.

Se por um lado um cidadão deve questionar os mandos e desmandos de seu governo, a desconfiança exagerada pode ser sentida no público anti-vacina que vê a conspiração de Arquivo X como algo verídica.

Mulder e Scully
Um aspecto central de Arquivo X é o quão bem Mulder e Scully trabalham em equipe. Colocada inicialmente para trabalhar nos arquivos X com o agente Mulder para desmoralizar seu trabalho, Scully acaba se tornando sua principal aliada e amiga. A despeito de toda a tensão sexual entre os dois, Mulder e Scully eram amigos e iguais, mas há vários episódios em que a expectativa do público é sacudida com os agentes discordando um do outro e discutindo. Não são poucas as vezes que Scully deu aquele virar de olhos para as ideias de Mulder.

Parcerias platônicas entre homens e mulheres na televisão e no cinema são raras ainda hoje, imagine nos anos 1990? Mas um bom legado dessa parceria pode ser vista hoje em dia com Olivia Benson e seus parceiros Stabler e Amaro em Lei & Ordem SVU, ou então Lattimer e Bering, de Warehouse 13. É possível mostrar amizades respeitosas entre homens e mulheres e ainda assim ter bons enredos.

Mulder e Scully são coisas da minha cabeça. Uma dicotomia. Eles são as metades iguais do meu desejo de acreditar em algo e minha incapacidade de acreditar em algo. Meu ceticismo e minha fé. E a criação dos personagens foi muito fácil pra mim. Eu quero, assim como muitas pessoas, ter essa experiência de testemunhar um fenômeno paranormal. Ao mesmo tempo, não quero aceitá-lo, sim questioná-lo. Acho que esses personagens e essas vozes saíram dessa dualidade.

Chris Carter

Produção bem feita
Além de seus roteiros instigantes e inovadores, Arquivo X parecia maneiro, real e atraente. A produção mostrou que era possível ter um visual sofisticado de Hollywood sem o mesmo orçamento gigantesco. Ao invés de ser um programa no estilo Contos da Cripta (nada contra) ou uma versão para a TV de filmes B de terror, Arquivo X soube aproveitar as restrições de orçamento usando e abusando de sombras e dos densos cenários canadenses. É possível notar, principalmente nas primeiras temporadas, o uso e abuso de lanternas, becos e armazéns escuros, pátios de trens e estacionamentos. De maneira quase inconsciente, Arquivo X forçou outros programas a se apresentarem de maneira tão elegante quanto ele mesmo.

Outra coisa que contribuía para a sensação de veridicidade da série era o fato de a produção contratar muitos atores canadenses praticamente desconhecidos do público norte-americano. Sem rostos conhecidos, o público tenderia a ver os episódios como se fossem mais reais do que se fosse uma grande estrela. Hoje alguns rostos são super conhecidos de outras produções, mas na época a grande maioria era de desconhecidos atores e coadjuvantes da TV do Canadá que ninguém tinha visto ainda.

Também desconhecidos na época eram seus roteiristas, diretores e produtores que depois partiram para bem sucedidas séries como Buffy, Supernatural, The Vampire Diaries, Lei & Ordem, Game of Thrones, Lost, Fringe, Stargate SG-1. Muitos deles levaram seus aprendizados da era de Arquivo X para novas produções que cativaram novos públicos que muitas vezes nem sabem que estão bebendo da fonte de uma série dos anos 1990.

I WANT TO BELIEVE

Arquivo X


Leia também: O efeito Scully

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Comentários

  1. Minha série queridinha da vida junto com Battlestar Galactica! ❤ Adoro tudo nela! Perfeita a sua análise!

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