Resenha: Eu que nunca conheci os homens, de Jacqueline Harpman

Quando li que este livro era uma distopia, me chamou a atenção na hora. A premissa é muito simples e brutal, onde a autora faz várias discussões, como o resultado do isolamento e da brutalidade na psique das pessoas, o desejo de liberdade, a construção da identidade, as consequências da ausência de conhecimento e como lidar com perdas tão grandes na vida sem enlouquecer.

O livro
Trinta e nove mulheres e uma menina são prisioneiras em uma cela subterrânea. O mundo que elas conheciam não existe mais, mas este mundo de antes é desconhecido para a menina, que não entende grande parte das conversas das mulheres mais velhas. Vigiadas constantemente por guardas que não falam com elas, não interagem de maneira alguma, a não ser para entregar comida, eles não respondem a nenhuma pergunta, não olham, não falam. Essas quarenta pessoas passam seus dias sem saber se é noite, se é dia, tendo que fazer suas necessidades na frente de todos, sem qualquer privacidade. Não podem correr, nem se agrupar ou se tocar. Parecem ratos de laboratório.

Resenha: Eu que nunca conheci os homens, de Jacqueline Harpman

A menina cresce entre essas mulheres, sem compreender coisas simples como um banho quente, chocolate, café, coisas que temos como garantidas, mas que fazem falta na cela fria de luz constante. Como não podem se tocar, a menina não pode ser consolada quando chora e cresce com uma aversão intensa ao toque humano. Não há permissão nem mesmo para professar uma religião em busca de conforto. Não há nada para se fazer na cela, a não ser cozinhar, dormir e fazer as necessidades em latrinas. Nem ao menos se matar.

Uma boa palavra para a narrativa de Harpman é aridez. É uma narrativa árida, seca, sem vida, justamente como aquelas mulheres se sentem. Elas teriam tido filhos? Maridos? Tinham alguma profissão? Elas não se lembram. Parece haver uma névoa em suas memórias. Elas teriam sido drogadas? É provável, mas ninguém sabe ou lembra de nada. Como construir uma identidade com base na vivência dos outros? O que vai ser dessa garotinha que cresce neste ambiente tão hostil.

A menina é a narradora. É por seus olhos e pensamentos que vamos conhecendo esse mundo tão limitado em que as mulheres vivem. Conhecemos seu ódio profundo, sua raiva e como o mundo de todas elas muda um dia quando elas se veem livres da jaula. O mundo é tão diferente do que aquele que as 39 mulheres conheciam que o medo se instala rapidamente e é justamente a garota, agora com 14 anos, que tenta acalmá-las.

Deve ser por isso que sou tão diferente das outras. Devem ter me faltado algumas das experiências que tornam alguém realmente um ser humano.

A garota precisa aprender a viver fora da jaula sem conhecer nada do mundo, uma tábula rasa que depende da curiosidade e do conhecimento das outras mulheres, que também é falho. Théa é a mulher com quem ela mais tem contato, que lhe ensina tudo o que sabe, porque foi enfermeira. Essas 40 pessoas terão que sobreviver juntas, sem saber o que as aguarda do lado de fora de suas jaulas. Esse momento de libertação, que poderia ser tão alegre, é de uma tristeza e irritação profundas, de tão traumatizadas e dependentes do sistema que elas estavam.

A escrita de Harpman evolui conforme a garota cresce. Os diálogos são esparsos, já que nem sempre existe algo para falar. Há muita melancolia no ar conforme o grupo busca maneiras de sobreviver com o que encontra. E ainda há a dúvida: que lugar é esse? Onde elas estão? São tantas perguntas, tantas, tão poucas respostas, principalmente para quem está lendo. Enquanto isso, a garota cresce, tentando conhecer seu corpo e sua identidade, sem saber como nutrir seu espírito incansável e curioso. Como amar algo quando você nunca conheceu o amor?

Para quem espera longas sequências de sobrevivência e ação das sobreviventes, longos diálogos feministas, esquece. O livro é sobre a sobrevivência, sobre a liberdade e como muitas vezes as pessoas trocam uma prisão pela outra. É sobre uma jornada em meio a tantas outras, uma jornada de crescimento, o que pode decepcionar algumas pessoas no final. Porém, a escrita da autora te prende em cada frase, em cada parágrafo. Me via grudada no livro às 3 da manhã, incapaz de parar, porque a garota cresce diante de nossos olhos conforme a leitura avança.

A autora não romantiza nada no livro. Suas descrições são brutas, diretas, sem qualquer enfeite. E para um livro tão curto, menos de 200 páginas, ele me pareceu gigante. Há passagens difíceis por causa da solidão daquelas personagens, a falta de respostas, que em outro livro teria me deixado muito puta (Aniquilação, oi), mas aqui funcionou muito bem. Claro que eu gostaria de ter respostas, mas acho que esse é um daqueles casos em que só podemos conjecturar.

Primeiro livro da autora publicado no Brasil, ele foi traduzido por Diego Grando. Acredito que a revisão pecou um pouco, com frases mal escritas e repetição de termos em alguns parágrafos, mas nada que de fato atrapalhe o bom andamento da leitura. Li o ebook e não o livro físico, mas não encontrei grandes problemas de diagramação nele.

(...) eu sou o rebento estéril de uma raça da qual nada sei, nem mesmo se ela já desapareceu. Pode ser que, em algum lugar, a humanidade esteja brilhando sob as estrelas, sem saber que uma filha do seu sangue termina seus dias no silêncio.


Obra e realidade
O principal questionamento do livro é: o que uma pessoa se torna se lhe for tirado tudo, se ela for criada em isolamento? Isso me lembrou imediatamente do livro As últimas testemunhas, de Svetlana Aleksiévitch, onde os adultos que ainda eram crianças na Segunda Guerra Mundial narraram o que viram e o que viveram nos conflitos. Crianças abandonadas à própria sorte depois de terem sua família e sua casa incendiadas pelos nazistas. Crianças jogadas em orfanatos, que esqueceram seus nomes, até mesmo deixaram de falar. Teria a experiência da autora na Segunda Guerra Mundial inspirado o enredo? Seriam as mulheres sobreviventes de um trauma tão poderoso apenas para viverem outro inferno?

Jacqueline Harpman

Jacqueline Harpman (1929-2012) foi uma escritora e psicanalista belga de origem judaica.

Pontos positivos
Bem escrito
A garota
Personagens e cenário
Pontos negativos

Revisão deixa a desejar



Título: Eu que nunca conheci os homens
Título original em francês: Moi qui n'ai pas connu les hommes
Autora: Jacqueline Harpman
Tradutor: Diego Grando
Editora: Dublinense
Páginas: 192
Ano de lançamento: 2021
Onde comprar: na Amazon!


Avaliação do MS?
Não vou dizer que este livro vai agradar a todo mundo, já que ele não responde exatamente a nenhuma pergunta. A narrativa crua e direta também pode incomodar, mas te digo para continuar, você não vai se arrepender do que ler e no final talvez tenha as mesmas dúvidas que eu quanto ao significado daquela jornada. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais!

Não é possível pensar à frente num universo onde não se conhecem as regras.

Já que você chegou aqui...

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