Sou tão fã da Svetlana que se ela escrever bula de remédio acho que terei prazer em ler. A ganhadora do Nobel de Literatura de 2015 usa as narrativas orais das pessoas para reconstruir o passado por suas perspectivas. Os livros de história nos trazem os fatos, as datas, as grandes reviravoltas e mudanças, mas não nos trazem as vidas pessoais, as experiências e sensações daqueles que participaram dos eventos. Eu já resenhei outros livros da Svetlana, como a A guerra não tem rosto de mulher, que foi uma porrada e este aqui não foi diferente.
O livro
Queria comer o tempo todo. Mas queria ainda mais que alguém me abraçasse, fizesse carinho. Mas havia pouco carinho, ao redor acontecia uma guerra, todos enfrentavam desgraças. Eu estava andando pela rua… Adiante, uma mãe levava seus filhos. Levava um nos braços, carregava, botava esse no chão e pegava o outro. Eles sentaram no banquinho, e ela pôs o menor nos joelhos. Eu fiquei parada, parada. Olhando, olhando. Me aproximei deles: ‘Tia, me põe no colo?’ Ela se espantou. E eu pedi de novo: ‘Tia, por favor…’
Quando falamos de guerra, sempre pensamos na quantidade de soldados que morrem. Estando na linha de frente de todos os grandes combates das grandes guerras, eles acabam como números nos relatos de batalhas. Mas não podemos esquecer dos civis que ficam presos entre os confrontos. Mulheres e crianças ainda são as grandes vítimas de guerras e a Segunda Guerra Mundial não foi diferente. Cerca de 13 milhões de crianças morreram, enquanto milhares de outras ficaram órfãs, largadas em orfanatos.

Entre os anos de 1978 e 2004, Svetlana registrou cerca de cem narrativas feitas por sobreviventes da Segunda Guerra que na época eram apenas crianças. Já adultos, eles relembravam os períodos de fome, de provação, de desespero, de medo. Se a guerra do ponto de vista de um adulto já é algo brutal, pense do ponto de vista de uma criança, que não entende o que tanta morte e destruição significa?
Não foi fácil ler este livro. Recebi o ebook antecipado pela Companhia das Letras e parei a leitura várias vezes. Os relatos são chocantes, são brutais, daquele tipo que dá vergonha de pertencer à raça humana que deixa crianças passarem pelas mais horríveis provações por conta de linhas em mapas. Crianças que serviam de banco de sangue para soldados alemães. Crianças sozinhas em meio aos escombros das cidades, depois de perderem a família inteira.
Muitas crianças viram os pais serem mortos ou espancados, especialmente se eles eram partisans ou de movimentos de resistência contra os alemães. Os alemães então arrombavam as casas, tomavam tudo o que havia lá dentro e muitas vezes trancavam as crianças dentro e ateavam fogo. Elas viram os alemães chegando, tacando fogo nas cidades, vilas e aldeias, destruindo linhas de trem, atirando nas pessoas que tentavam se opor, tomando os poucos pertences de valor que tinham, matando mulheres que ainda amamentavam e deixando os bebês no peito, sugando de uma mulher morta. Vou te dizer... parei a leitura muitas vezes, porque eu não aguentava. Não dava.
Queimaram nossa aldeia em 1943... Nesse dia estávamos desenterrando batatas. Vassíli, o vizinho, havia estado na Primeira Guerra Mundial e sabia um pouco de alemão; ele disse 'Eu vou lá e peço aos alemães que não queimem a aldeia. Tem crianças aqui.' Foi lá, e ele mesmo foi queimado. Puseram fogo na escola. Todos os livros. Queimaram nossas hortas e nossos jardins.
(...)
O que é melhor: lembrar ou esquecer? Será melhor ficar calado? Levei muitos anos para esquecer...
Estou bem acostumada com a crueza dos relatos dos livros de Svetlana. Estou lendo Vozes de Tchernóbil, já li A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético, mas NADA, digo NA-DA me preparou para o que eu li aqui. É muito difícil se conter e não chorar ao ouvir os relatos de adultos que tiveram suas infâncias roubadas pela guerra. Por isso eu parei tantas vezes, por isso eu ficava dias longe dessas histórias, porque a guerra é uma estupidez tão grande, uma idiotice tipicamente humana que eu gostaria de ver alguém justificar a existência de um conflito como esse depois de ler As últimas testemunhas.
Depois de adultas, algumas daquelas crianças reencontraram parentes perdidos pela Europa ou pela Rússia. Outros nunca encontraram parentes. Vagaram sozinhos pela vida, carregando as marcas de um conflito que nem lhes dizia respeito, às vezes desconhecendo os próprios nomes. Tiveram que construir uma vida, depois até famílias sobre isso. Não consigo imaginar como deve ter sido. Não consigo conceber que elas tiveram que passar por tantos traumas.
Como li a prova do ebook, ele tem vários problemas de revisão que acredito terem sido sanadas no volume físico. É um livro mais enxuto do que edições anteriores, com menos de 300 páginas, mas acredita, vai parecer umas mil, tamanho conteúdo que ele tem.
Obra e realidade
Svetlana disse que não se cansa de surpreender com o quão interessante é a vida de uma pessoa comum. E pense a respeito: quantas histórias incríveis cada um de nós tem para contar? Quando paramos para ouvir o outro, aprender sobre sua vida e como é sua luta diária, conhecemos enfim aquele indivíduo, não uma mera caricatura ou um estereótipo. Conhecemos alguém. E como qualquer um, temos nossas dores e nossos momentos difíceis, onde a esperança parece ter nos abandonado.
Svetlana Aleksiévitch é uma escritora e jornalista bielorrussa, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015. Lecionou e escreveu em revistas e jornais da Bielorrússia e Ucrânia, dedicando-se ao estilo de novela coletiva, onde ela justapõe testemunhos individuais para se aproximar o máximo possível da substância humana de eventos e acontecimentos históricos.
PONTOS POSITIVOS
Relatos de sobreviventes
Pesquisa
Fatos reais e brutais
PONTOS NEGATIVOS
Violência
Relatos de sobreviventes
Pesquisa
Fatos reais e brutais
PONTOS NEGATIVOS
Violência
Avaliação do MS?

Até mais!
Já que você chegou aqui...

Eu passei a amar jornalismo literário por causa da Svetlana, lendo o Vozes de Tchernobil. Adoro tudo que ela faz, apesar de ter lido somente dois (li também O fim do homem soviético em PT-PT). Agora estou lendo o "A guerra não tem rosto de mulher", mas estou na mesma situação que você enfrentou, Capitã. Tem horas que eu simplesmente desligo o Kindle e choro. Aí fico uns 15 dias sem pegar o livro, simplesmente porque falta coragem. Mas eu diria que os livros dela são essenciais, principalmente pra essa geração criada a base de Call of Duty e Tropa de Elite, para que eles vejam que esse tipo de coisa não é divertido e trás muita dor. Mais do que a gente é capaz de imaginar.
ResponderExcluirParticularmente, não conheci nenhum outro autor que faça um trabalho parecido. Por acaso você saberia de algum?
Por fim, como hoje é 25/12, um feliz Natal para você e para os leitores do blog também. Que todos nós tenhamos muitas alegrias, felicidades e muita paz. E uma vida longa e próspera, como diria o sábio! ;)