A intrínseca relação entre ficção científica e faroeste

Se tem um gênero ao qual a ficção científica moderna tem uma grande dívida de gratidão, esse gênero é o do faroeste (ou western). É interessante que um gênero que costuma ser ambientado no futuro, com naves espaciais e planetas distantes, tenha tanta influência do passado norte-americano. E não são poucas as produções que ainda hoje fazem sucesso baseado neste estilo.

A intrínseca relação entre ficção científica e faroeste
Cena do jogo ExeKiller

O faroeste ou western é normalmente baseado nos modos de vida do meio oeste dos Estados Unidos, entre a segunda metade do século XIX e começo do século XX. As histórias costumam ser centradas na figura do vaqueiro nômade, do pistoleiro solitário em seu cavalo, com seu chapéu, seu poncho, suas botas e esporas. Ele combate outros caubóis, visita saloons, flerta com prostitutas e discute com caçadores de recompensas, apostadores, soldados da cavalaria e fazendeiros, nativos e latinos que moram na região. Muito popular nas revistas pulps, muitos autores se inspiraram nessa época para compor contos, quadrinhos e livros.

A ficção científica como gênero cinematográfico não se estabeleceu até a década de 1930, com filmes como Frankenstein e O Homem Invisível. Mas, embora estejam entre os primeiros sucessos de bilheteria da ficção científica, esses filmes também podem ser considerados filmes de terror, mais até do que ficção científica. A ficção científica dos primórdios começa a ganhar projeção com os chamados cinesseriados.

Esse tipo de produção era dividido em partes, tal como uma série de TV, com enredos focados em aventuras. A audiência ia aos cinemas toda semana para assistir ao próximo capítulo, como a gente faz hoje em dia com as séries, em especial aquelas que têm um enredo longo, ao contrário das séries episódicas, com o monstro da semana. A maioria dessas produções vinham da Europa, mas com a destruição da maioria dos estúdios durante a Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se tornaram líderes da produção cinematográfica, mudando para o modelo de filmes longos que temos hoje.

Os cinesseriados tiveram um retorno após a Grande Depressão, em 1929, já que um longa era um filme mais caro de produzir, o que encarecia o ingresso. De maneira a distrair a população tensa pela falta de empregos e de perspectiva, muitos estúdios começaram a se voltar para gêneros como a ficção científica e fantasia, o que muita gente chamaria de "escapista". Um dos primeiros sucessos do cinesseriado de ficção científica foi The Phantom Empire, de 1935.

Uma farofada de western e musical com scifi, The Phantom Empire tinha 12 capítulos, o primeiro com meia hora e os seguintes com cerca de 20 minutos. O enredo era protagonizado por - surpresa! - um caubói interpretado por Gene Autry (e com o mesmo nome), ator e cantor famoso por westerns. Gene descobre em seu rancho uma passagem para uma cidade subterrânea avançada e que odeia o mundo da superfície. O filme foi depois editado para uma versão de 70 minutos, em 1940 e relançado sob o título Radio Ranch ou Men with Steel Faces.

Os cinesseriados causaram um grande impacto na ficção científica, pois o formato enfatizava as cenas de ação e a aventura que mantinham a audiência cativa até o final. O foco não era o enredo em si, as especulações científicas, mas sim os confrontos do mocinho com o vilão e o drama ao redor de algum evento catastrófico envolvendo o mocinho. Cinesseriados como Buck Rogers e Flash Gordon mantinham os expectadores vidrados na telona por várias semanas. E isso não é diferente de qualquer filme de faroeste, não importa se a cena era no espaço ou na Califórnia.

Os personagens não usavam cavalos, mas utilizavam foguetes, andavam por aí com pistolas de raios, enfrentando bandidos intergalácticos em planetas desolados e terras exóticas nos confins do espaço. E o seu protagonista é um forasteiro, vindo de um lugar diferente, de um tempo diferente, tentando trazer ordem ao caos que encontra nessas paradas selvagens. E isso é antes do surgimento dos filmes de ação como conhecemos. Assim os westerns e as aventuras de ficção científica preenchiam esse nicho.

Até a década de 1950, a ficção científica cinematográfica era toda baseada em livros e muitos desses filmes eram em tons de horror caso não focassem nas aventuras de um pistoleiro solitário. Nos anos 1960 isso muda com a entrada do Código dos Quadrinhos, em 1954, que censurava os aspectos mais violentos das histórias. O cinema de ficção científica e horror foi bastante impactado com essa mudança e para substituir as partes assustadoras os estúdios se voltaram mais uma vez para os filmes de faroeste, incorporando vários atributos do gênero na ficção científica. É só pensar em Planeta dos Macacos e os personagens montando cavalos que fica difícil não ver o western ali. Grandes expoentes de scifi western dos anos 1960 são Jesse James Meets Frankenstein's Daughter (1965) e The Valley of Gwangi (1969).

Quando o gênero do faroeste começa a cair no final da década de 1960, entrando o western revisionista, a televisão se torna o nicho a ser ocupado. Perdidos no Espaço (1965-1968) é puro faroeste com sua família de pioneiros desbravando terras exóticas e nativos inóspitos, mas foi a chegada de Star Trek que, de fato, revolucionou o gênero. Gene Roddenberry uma vez disse que o nome provisório de Star Trek era "Wagon Train" nas estrelas. Wagon Train foi um programa muito popular de faroeste da década de 1950, que falava das aventuras de viajantes rumo ao oeste dos Estados Unidos, conhecendo novas terras e pessoas a cada episódio. Star Trek é a mesmíssima coisa, só que no espaço.

Star Trek

Indo aonde ninguém mais esteve, a série clássica não focava tanto na aventura, ainda que houvesse cenas aventurescas e de ação. A visão era sempre voltada para pautas morais e dilemas diplomáticos, onde a ficção científica era usada para abordar temas contemporâneos que não seriam abordados em uma série de horário nobre. Os mundos distantes, os alienígenas exóticos, forneciam o perigo e a aventura típicos de um faroeste, ao mesmo tempo em que forneciam discussões sérias envelopadas em uma roupagem de ficção científica.

Nos cinemas, o faroeste voltaria vários anos depois, influenciado pelo sucesso das reprises de Star Trek. O primeiro filme de Star Wars estreou em 25 de maio de 1977 e tornou-se um inesperado sucesso na cultura popular, inaugurando uma nova era para o cinema de ficção científica que viria a seguir, inclusive para Star Trek, cujo interesse foi renovado. Star Wars trazia planetas desolados, o herói solitário com sua pistola em mãos, os apostadores, os caçadores de recompensas, o bar cheio de gente estranha.

O que Star Trek tinha de clean e limpinha, Star Wars tinha de suja e sucateada, inaugurando um sub-gênero conhecido como "dirty space", com suas naves gastas e de tinta descascando. Vemos suas corridas nos planetas longe demais do poder central, os heróis cavalgando animais extraterrestres, a forma como as apostas são feitas em mundos controlados por gangsters (hutts, olá!) e tudo isso é estética de faroeste. John Carter, a franquia Mad Max, Serenity, As Crônicas de Riddick, O Livro de Eli, A Torre Negra, Westworld, The Expanse, The Walking Dead, O Mandalorian, Cowboy Bebop, tudo isso remonta às antigas aventuras do pistoleiro solitário nas terras selvagens do oeste norte-americano.

A reflexão que fica sobre tudo isso é: é possível fazer diferente? Enredos de faroeste costumam mostrar a conquista da vida selvagem, a subordinação da natureza e de seus povos nativos para a expansão fronteiriça de alguma civilização. Falam de códigos de honra, de vinganças pessoais, ao contrário da vida urbana, do sistema de justiça baseado em leis e tribunais. Por que esses enredos ainda possuem um apelo tão forte e como podemos fazer diferente?

Muito do apelo do faroeste deriva dos romances de cavalaria e dos romances arturianos, onde um nobre cavaleiro vagava sobre seu cavalo indo de um lugar para outro, enfrentando vilões e corrigindo injustiças, ligado apenas ao seu código de honra incorruptível, resgatando moças em perigo. Há também semelhanças ao estilo dos ronin, da cultura japonesa. Existem romances, como os de Becky Chambers, que vejo que conseguem escapar um pouco do formato, então acho sim ser possível escrever de maneira a explorar novas formas de narrativa. E entenda, não é uma crítica ao faroeste, ou a todos os trabalhos derivados dele, é apenas uma sugestão, uma maneira nova de pensar e produzir.

Até mais!

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Comentários

  1. Muito interessante Sybylla. Eu percebo que essa relação também se dá muito frequentemente quando se utiliza um cenário inóspito pós-apocalíptico (e similares) na ficção, que lembra o estilo de vida áspero e carente de recursos dos westerns. É bem comum em filmes como Os Mais Jovens (Young Ones), de 2014 ~ segue a referência: https://www.imdb.com/title/tt2693664/.

    Um beijo :*
    Não Me Mande Flores

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    Respostas
    1. Camila, que prazer te ver por aqui!

      Sim! Impressionante como o gênero se mantém ao longo de décadas. Curto bastante enredos futuristas ou distópicos com pitada de western, mas também gosto de ver produções que saiam um pouco do lugar comum.

      Obrigada pela visita, beijos!

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  2. oi Sybylla, belo texto!
    fiquei pensando se um caminho pra ficção seria incorporar histórias de máfia ou gangues como uma leitura do crime organizado e a vida periférica das cidades. creio que Cyberpunk 2077 seja um bom exemplo disso

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