Rick Deckard era um replicante?

Se tem uma discussão dentro da ficção científica que não acaba e nem chega a um consenso é sobre a verdadeira identidade de Rick Deckard (Harrison Ford), o caçador de androides de Blade Runner. Desde a estreia do icônico filme noir, em 1982, que se debate sobre isso. Enquanto o livro não deixa margem de dúvida sobre a humanidade de Deckard, o filme é bem mais ambíguo, dando pistas que apontam para as duas direções. Recentemente joguei a discussão no Twitter e a reação foi basicamente meio a meio.

Rick Deckard era um replicante?

A discussão entre Harrison Ford e Ridley Scott sobre a identidade de Deckard rola até hoje. O ator acha que Deckard é um ser humano, mas Scott acredita que Deckard está entre humanos há tanto tempo que ele consegue se passar por um sem levantar suspeitas. Dennis Villeneuve, por sua vez, disse que "gosta das perguntas, não das respostas".

Deckard é um caçador de androides. Ele precisa rastrear, encontrar e aposentar androides orgânicos, conhecidos como replicantes, que estão na Terra ilegalmente. As coisas se complicam quando Deckard se apaixona por Rachel, uma bela replicante com complicadas emoções. Os dois acabam juntos, mas complicações na gravidez acabam com a morte de Rachel no parto (coisa que sabemos em Blade Runner 2049). A criança é colocada para adoção, para protegê-la, já que as implicações de uma criança híbrida a colocam em perigo, já que androides - supostamente - não podem se reproduzir.

Ele é humano
Uma das indicações de que Deckard seria humano é a falta da superforça, coisa que todos os outros androides têm. Outra coisa é a questão da idade. Sabemos que os androides Nexus 6 têm data de validade, tanto que Roy Batty, ao encontrar com Tyrell, lhe pede por "mais vida", ou seja, ele quer mais anos do que aquele estipulados de fábrica. Se Deckard é um caçador de androides veterano, como ele conseguiu construir sua carreira com apenas quatro anos de vida? Além disso, a polícia de Los Angeles contrataria um androide que está de maneira ilegal na Terra para caçar sua própria gente?

Blade Runner 2049 também dá pistas de que ele seja humano. Deckard viveu sozinho por 30 anos após a morte de Rachel, ou seja, isso dá dez vezes mais do que o tempo estipulado de fábrica para o seu suposto modelo. Ele envelheceu, característica estranha de se ter em um "mais humano que os humanos". Sabemos que Tyrell fabricou modelos Nexus 8, já no fim da vida, para que pudessem ter vidas longas, mas quando isso acontece, Deckard já é um caçador de androides faz tempo.

O roteirista de Blade Runner, Hampton Fancher, disse que escreveu o personagem como sendo humano, mas ele também admite que Ridley Scott gosta das ambiguidades e das mensagens cruzadas para os expectadores.

Leia também: 10 coisas que você não sabia sobre Blade Runner

Ele é replicante
Ainda que existam indicações de que ele seja humano, as indicações de que ele seja um replicante também são fortes. Deckard não demonstra ter a superforça dos androides, mas ele sobrevive a um embate violento com Roy Batty perto do final e sobrevive quase sem marcas. Isso é uma indicação de sua superforça agindo, de possuir uma grande resistência a danos, coisa que os androides precisavam ter, já que faziam todo o trabalho sujo que os humanos não queriam fazer?

Outra indicação é o famoso origami de unicórnio. Em algum momento, Deckard começa a sonhar com um unicórnio correndo em um campo verdejante. Depois, seu parceiro, Gaff (Edward James Olmos), lhe dá um unicórnio de papel, indicando que o sonho é um implante e que Gaff sabe a respeito. As memórias implantadas são necessárias para que os androides tenham emoções e sabemos que elas precisam ser bem feitas para que o androide não saiba que são falsas.

Deckard também não responde a Rachel se ele passou por um teste Voight-Kampff, necessário para diferenciar um androide de um ser humano, sem contar a frase de Gaff, quando ele diz com ironia "You’ve done a man’s job, sir!", indicando que ele trabalhou como uma pessoa de verdade e não uma fabricada. E, claro, não podemos esquecer dos olhos brilhantes de Rick Deckard em uma cena com Rachel, uma das maiores indicações de que ele seja um androide. Harrison Ford disse que isso foi um erro de fotografia enquanto aplicavam o efeito especial, chamado processo de Schüfftan. Mas como Ridley Scott gosta de ambiguidades, fica difícil acreditar nessa explicação.

Rachel e Deckard

Blade Runner 2049 se mantém ambíguo. Sabemos que os Nexus 8 que envelhecem existem, já que Sapper Morton (Dave Bautista) mostra sinais de envelhecimento ao ser encontrado por K (Ryan Gosling). Além disso, quando K encontra Deckard, ele está, novamente, exercendo uma superforça ao viver em uma região repleta de radiação, em Las Vegas. E quando ele encontra com Niander Wallace (Jared Leto), ao falar sobre Rachel, o empresário diz que o ex-policial foi "projetado para fazer nada menos que se apaixonar por ela, naquele momento", embora ele tempere essa afirmação dizendo "se você foi projetado" e acrescentando que poderia ter sido "amor" ou "matemática".

Há também indicações de que o próprio Wallace seja um androide. Ele tem olhos brilhantes, implantes cerebrais e está irritado com o fato de que alguns androides possam se reproduzir e ele não, já que ele está em busca deste segredo tão fabuloso. Não seria irônico que, ao invés de matar os humanos, eles apenas estejam nos superando e se libertando da fabricação industrial?

Faz diferença?
O policial K é enganado, junto do público, ao longo de 2049. Ele mostra sua humanidade ao unir pai e filha no final, enquanto observa a neve cair, sentindo que sua vida estava chegando ao fim e que ele era muito mais do que a programação de fábrica. Esse mesmo momento de humanidade é dito por Roy Batty na famosa cena da chuva, com seu monólogo célebre.

Eu vi coisas que vocês nem imaginam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.

Sim, Roy era um androide, mas ele demonstrou uma humanidade que choca o próprio Deckard. Se a humanidade é uma construção social - não nascemos humanos, nos tornamos humanos - será que os androides não são humanos também? Acho que ambos os filmes conseguiram nublar a linha que nos separa dos androides com seus personagens que muitas vezes parecem ser "mais humanos que os humanos". Eles são mais fortes, mais rápidos, mas podem demonstrar amor, compaixão, dor. Talvez essa seja a beleza da coisa, não saber diferenciar, pois se diferenciarmos seremos preconceituosos, permitindo que eles sejam mortos apenas por serem quem são. E isso tem nome.

Até mais! 🦄

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Comentários

  1. Foi uma das melhores leituras que li sobre esse assunto. Meus parabéns pela forma que abordou tal tema.👏🏾👏🏾👏🏾

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