A Guerra dos Mundos e o mito do pânico no rádio

Praticamente todo fã de ficção científica conhece a história. Em 30 de outubro de 1938, Welles colocou no ar uma dramatização do livro A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. O episódio fazia parte da série The Mercury Theatre on the Air, da rádio CBS. O programa adaptava o livro com uma apresentação típica de um programa de rádio e ele então começava a ser interrompido por boletins de notícias, falando de estranhas explosões em Marte, seguido de um objeto voador não identificado chegando nas proximidades de Grover's Mill, em Nova Jersey. Estranhos objetos cilíndricos estavam descendo do céu, despejando marcianos para todos os lados. Transmitida sem interrupções, a invasão continuava, o que teria gerado pânico em "milhares" de pessoas, que pensaram em fugir de suas casas, teriam se suicidado ou ligado apavoradas para a polícia.

É, só que não.

A Guerra dos Mundos e o mito do pânico no rádio

As pessoas começaram a fazer as malas, correndo para as ruas, colocando coisas nos carros, de olho nos céus, enquanto o rádio narrava os movimentos dos marcianos e sua sede de poder sobre os pobres norte-americanos. Os moradores desesperados da cidade começaram a ligar para a polícia, outros corriam pelas ruas desabaladamente, tentando encontrar suas famílias. Crianças choravam, idosos temiam por suas vidas, os cães latiam, a confusão tomou conta da população em nível nacional! Isso foi repetido ao longo das décadas e até foi lido em livros de história. A dramatização de Welles se tornou um dos episódios mais conhecidos da história do rádio. E até documentários a respeito mostram atores encenando o pânico da população.

Mas se houve mesmo pânico foi em uma minúscula parte da audiência do programa que não era assim tão conhecido na época. A culpa disso tudo? Os jornais. O rádio havia desviado a receita de publicidade da mídia impressa durante a Grande Depressão de 1929, prejudicando gravemente a indústria jornalística. Assim, os jornais se valeram do programa de Welles naquela noite para desacreditarem o rádio como fonte de notícias. Digamos que os jornais deram uma aumentada na história da invasão marciana que causou pânico para mostrar ao público, aos anunciantes e às agências reguladoras que a indústria do rádio era irresponsável e que não deveriam confiar no que era veiculado por ela.

Editoriais foram lançados por jornais grandes, como o The New York Times, chamado "Terror by Radio", onde eles criticavam os funcionários da rádio por aprovarem um programa ficcional capaz de botar medo nas pessoas de maneira tão irresponsável. Eles cobravam profissionalismo do rádio sendo que eles mesmos não estavam nem um pouco sendo profissionais com todo o sensacionalismo sobre o caso.

As notícias com críticas ao programa de Welles saíram logo no dia seguinte, dia das bruxas de 1938 e um fenômeno previsível acabou acontecendo: quanto mais famoso o programa se tornava por causa do sensacionalismo dos jornais e quanto mais o tempo passava, mais e mais pessoas alegavam ter ouvido a dramatização de A Guerra dos Mundos, confirmando o pânico. É como se todo o país estivesse sintonizado no programa da CBS naquela noite devido ao tamanho dos boatos que se espalharam.

Ben Gross, o editor de rádio do New York Daily News, publicou um livro de memórias em 1954. Ele disse que as ruas de Manhattan estavam vazias e calmas naquela noite enquanto ele rumava para a sede da CBS no momento em que a transmissão de Welles estava acabando. Ou seja, nada de pânico e pessoas apavoradas pelas ruas da Big Apple, certo? Mas isso não impediu o Daily News de espalhar a história do pânico na capa da edição do dia seguinte algumas horas depois.

O serviço de classificação C.E. Hooper ligou para cerca de 5 mil famílias naquela noite para uma pesquisa nacional de audiência. Dessas 5 mil, apenas 2% disseram estar ouvindo a rádio CBS. Ou seja, 98% das pessoas estavam ouvindo outra coisa ou estava com o rádio desligado naquela noite. A baixa audiência pode ser explicada pelo fato de que outro programa de rádio muito popular na época estava no ar na mesma faixa de horário: o ventríloquo Edgar Bergen, em seu show de comédia e de variedades, Chase and Sanborn Hour.

As pessoas podem ter virado o sintonizador durante os intervalos comerciais e colocado no programa? Claro, pode ter acontecido, mas mesmo as afiliadas da CBS em outras cidades optaram por colocar no ar outros programas ao invés da dramatização de Welles. A pesquisa com a audiência mostrou ainda que não apenas poucas pessoas ouviram o programa como também aceitaram que era uma brincadeira bem feita e não uma coisa real.

Uma pesquisa da Radio Project, que analisa o efeito da mídia de massa na sociedade, descobriu que boa parte da audiência sacou que era uma dramatização (apenas 1/3 dos ouvintes daquela noite ficaram com medo). A maioria, na verdade, achou que estava ouvindo a movimentação alemã na Europa, afinal era outubro de 1938, faltava menos de um ano para a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o pau já estava torando por lá. Isso pode ter contribuído para o pânico de alguns ouvintes que achava estar ouvindo um relato de guerra na Europa e não marcianos.

Outra coisa que contribuiu para algumas pessoas acharem que era um boletim de notícias real é que o programa de Welles não tinha anunciantes (não era um programa tão famoso), então não precisava ficar parando o programa para exibir comerciais o tempo todo. Em caso de notícias urgentes - e quem lembra do 11 de Setembro sabe disso - os canais de notícia não param de transmitir para dar espaço a anunciantes.

Relatos de suicídios, infartos, pessoas em choque dando entrada em hospitais, Guarda Nacional chegando em cidades apavoradas, nada disso é verdade. A maioria foram boatos aumentados pelos jornais. Cartas de leitores publicadas nos dias seguintes desmentem o pânico e comentam que as ruas naquele domingo à noite estavam bastante tranquilas e alguns jornais, como o Chicago Tribune, um dos maiores do país, nem ao menos publicou o tal "pânico" em sua capa naquela segunda-feira.

O suposto pânico e a fama "infame" da dramatização de Welles serviram para algumas coisas, porém. Alavancou a venda do livro e o nome de H.G. Wells nos Estados Unidos, gerou propaganda gratuita para Orson Welles e para a própria CBS e ajudou o sindicado das rádios a provar aos reguladores federais que o meio era relevante para o país e que deveria ser protegido. Ainda hoje o mito dá ao rádio uma importância e fama que reforça sua presença em casas e veículos. Até uma peça infame de uma invasão alienígena serviu como propaganda para um meio de mídia que tinha que competir com gigantes jornais impressos.

O que de fato apavorava as pessoas naquela época não era a invasão marciana, mas sim os movimentos de tropas alemãs do outro lado do Atlântico. Havia o medo do poder da mídia, de mudar a normalidade doméstica através das ondas do rádio. Hoje nós temos a notícia na palma da mão, internet, o mundo em 1 minuto e os medos continuam os mesmos. É o medo da perda da privacidade, das notícias falsas, medo de forças misteriosas invadindo nossa normalidade.

Até mais! 📻


Leia também:
Schwartz, A. Brad (2015). Broadcast Hysteria: Orson Welles's War of the Worlds and the Art of Fake News (1st ed.). Nova York: Hill and Wang. ISBN 978-0-8090-3161-0.

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Comentários

  1. Você tem a fonte disso? Pergunto porque existe muito material confirmando (e maior ou menor intensidade) que houve confusão na noite. Esse é o primeiro texto que eu vejo questionando isso. Gostaria de ver esse outro lado da história.

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    1. Vá na página em inglês da Wikipédia que conta a história da transmissão. Peguei tudo de lá.

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