Resenha: Questão de Classe, de Christina Dalcher

Da mesma autora de Vox, chega uma distopia que leva a questão do mérito a um vertiginoso ápice e toca em assuntos brutais como supremacia branca e eugenia. Neste mundo distópico e terrivelmente próximo de nós, as pessoas são avaliadas através de notas, provas para obter uma pontuação perfeita e qualquer falha é o suficiente para te rebaixar.

O livro
Neste mundo que não é tão diferente assim do nosso, o potencial de todas as pessoas, principalmente as crianças, é medido por seu número Q. Uma pontuação alta dá acesso às melhores escolas, melhores universidades, melhores residências e um futuro brilhante. Segundo o governo, isso é uma forma de criar uma sociedade melhor, com custos baixos, professores dedicados a classes separadas por desempenho e pais contentes por ver seus filhos convivendo com crianças do mesmo nível. Mas e aquelas crianças que não alcançam o alto desempenho?

Resenha: Questão de Classe, de Christina Dalcher

Elena Fairchild, a protagonista, é professora em uma dessas escolas de elite do governo. É casada com um namorado do ensino médio e o casamento anda morno, parado, preso na rotina. Mas quando sua filha mais nova, Freddie, de apenas 9 anos, tira uma nota baixa e é enviada para uma instituição longe de casa, Elena se desespera. E francamente, nós também, pois é fácil perceber que tem algo errado nesse mundo. Crianças brilhantes, de repente, estão tirando notas baixas e sendo enviadas a internatos. O que está acontecendo?

É muito fácil pensarmos em nós mesmos como a pessoa que toma a iniciativa enquanto o resto do mundo permanece calado, mas fico me perguntando se eu teria condições de tão altruista.

Uma das coisas que eu mais gosto nos livros de Dalcher são suas protagonistas. Elas não são adolescentes, nem jovens moças que entram em uma jornada para salvar o mundo. As mulheres de Dalcher são mães trabalhadoras, preocupadas com o futuro de seus filhos, mulheres que já passaram dos 40 anos, mas que querem mudar o mundo mesmo assim. São mulheres imperfeitas, com seus defeitos e virtudes, mulheres cansadas de ver o mundo piorar e não fazer nada. Na ficção científica, mulheres maduras ou idosas não são exatamente comuns e é justamente por isso que seus enredos me agradam.

Essas mulheres imperfeitas passaram um tempo inertes enquanto o mundo mudou e, de repente, elas se veem atingidas pessoalmente pela nova ordem que acabou ajudando a criar quando não fez nada. E é interessante notar que elas percebem que cometeram um erro e que talvez seja tarde demais para remediar. Elas também entendem que mudar o mundo não é uma tarefa para uma pessoa só, mas se ao menos puder fazer algo, já é um passo na direção certa. Elas saem da inércia e partem para a ação, arriscando tudo por seus filhos.

Boa parte da construção do universo de Dalcher está no subtexto, nas passagens em que a protagonista volta no tempo e relembra algum momento da juventude, tornando essa lembrança um tijolinho a mais para entender o que está acontecendo. E é perturbador perceber as semelhanças com o mundo atual. Dalcher só subiu o tom, exagerou um pouquinho, sem nunca sair do contexto para mostrar que não estamos tão longe assim desse tipo de mundo. Quais são os alunos que têm mais chances de ir para uma universidade de renome? O aluno do colégio particular, com aulas de laboratório, idiomas e artes marciais ou o da escola pública, defasada, sem professores e recursos?

Há também um outro debate iniciado pela avó quase centenária de Elena. Sua família é descendente de alemães e sua avó conta histórias de como o pensamento eugenista se estabeleceu e norteou a política de vários países. É uma pena que a avó de Elena não teve tanto tempo assim para se desenvolver. A autora, em alguns momentos, desmerece a narrativa dela e dá a impressão de que ela está mentindo ou que está aumentando a história. Isso prejudicou o bom entendimento do passado e da mensagem que queria passar à neta, mas Elena consegue trabalhar com as informações para encontrar o que ela está sugerindo.

Outro ponto importante da narrativa é o abuso sistemático do marido de Elena, Malcom. Ele a ameaça com divórcio, sabendo que isso a fará perder as filhas, troca a senha de seu notebook para que ela não pesquise nada na internet, tem clara preferência pela filha mais velha, com uma nota Q bem alta, enquanto ignora a mais nova, que tem transtorno de ansiedade e não consegue se encaixar nesse mundo perfeito que quer tantas notas altas. Isso é violência doméstica e Elena suporta porque sabe que a sociedade, que valoriza a figura da "perfeita família americana" jamais lhe daria crédito, afastando-a das filhas. Como que ela pode desconhecer o próprio marido de duas décadas? Nem Elena sabe responder a isso.

Li o ebook, não li o livro físico, mas não encontrei problemas de diagramação ou revisão. A tradução de Ivanir Calado está ótima e também não tem problemas.

Obra e realidade
Quando se fala em eugenia e segregação, muita gente pensa logo na Alemanha, suas leis contra os judeus e o holocausto. Mas a maioria desconhece que a eugenia encontrou um campo muito fértil nos Estados Unidos. Uma consequência brutal da eugenia nos Estados Unidos foi o surgimento de leis antimiscigenação, que proibiam casamentos interraciais e estabeleciam esterilização compulsória em mulheres latinas, negras e indígenas, medidas que vigoraram no país até os anos 1970. Medidas como essa não chegam de uma vez. Elas se estabelecem aos poucos, com medidas que parecem beneficiar a sociedade e quando nos damos conta mulheres estão sendo esterilizadas com a autorização do governo ou campos de concentração estão sendo criados.

A eugenia também encontrou terreno fértil no Brasil e sua política para "embranquecer" a população após a abolição. Em jornais da época não é difícil encontrar matérias sobre os "benefícios" da melhoria genética da população e um de seus grandes apoiadores foi o escritor Monteiro Lobato. As ideias eugenistas começaram a perder forçar após a Segunda Guerra Mundial e o holocausto.

Christina Dalcher

Christina Dalcher é linguista e professora universitária com doutorado pela Universidade de Georgetown, escritora nas horas vagas.

Se não posso ter animação, serve fúria e raiva. São duas coisas que eu sinto de sobra.

PONTOS POSITIVOS
Elena
Discussão política
Bem escrito e pesquisado
PONTOS NEGATIVOS

Pouco desenvolvimento de alguns personagens


Título: Questão de Classe
Título original em inglês: Master Class
Autora: Christina Dalcher
Tradutor: Ivanir Calado
Editora: Arqueiro
Ano: 2020
Páginas: 304
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Eu temia que este livro pudesse ser um Vox repassado, mas felizmente me enganei. O final me deixou totalmente surpresa, eu não esperava tal movimento de Dalcher, e achei bem condizente com toda a jornada. Não só isso, ela toca em pontos muito importantes, como a famigerada meritocracia, que não funciona em mundo desigual, mas que querem enfiar goela abaixo das pessoas como se fosse a solução para a desigualdade. Foi uma leitura dolorosa, mas muito importante. Quatro aliens para Questão de Classe e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais!

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Comentários

  1. Vou seguir sua recomendação e lerei esse livro da autora. Li "Vox", gostei no geral, mas achei a resolução muito "fácil". Estruturas como aquelas não caem do dia para a noite. E nunca por ação de uma única pessoa. Reconquistar direitos de um grupo é muito difícil. Principalmente se o outro grupo não está disposto à cedê-lo e uma parcela da sociedade está muito confortável com ele..

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