A carta de rejeição de Jules Verne

Muito se falou sobre o trabalho do editor na semana passada. Alguns escritores descobriram, não sem espanto, que seu manuscrito não vai direto para a gráfica, ele precisa de um trabalho de lapidação que vai tornar o livro algo melhor. São muitas as etapas para que um livro saia das mãos do autor e chegue à estante das livrarias. E são etapas necessárias. Ninguém está isento de críticas, ainda mais na escrita e ela é vital para o trabalho continuar. Nem Jules Verne, um dos pais da ficção científica, escapou da avaliação de seu editor.

A carta de rejeição de Jules Verne

Em 1989, o bisneto de Jules Verne descobriu um manuscrito perdido do famoso biso. Paris no Século XX, escrito em 1863, estava trancado em um cofre e foi guardado pela família Verne por pelo menos duas gerações. Foi preciso chamar um chaveiro especializado em cofres para poder abri-lo e visualizar o conteúdo. Depois de uma minuciosa análise do papel, da letra de mão, da máquina de escrever, das anotações nas margens, era verdade, uma obra inédita de Verne foi descoberta em pleno século XX. O livro foi publicado na França em 1994 e depois ganhou o mundo em várias traduções, incluindo no Brasil, pela editora Ática.

Mas talvez mais interessante que o livro em si seja o fato de que ele foi rejeitado pelo editor de Verne. Um dos estudiosos do escritor francês, Piero Gondolo della Riva tinha consigo uma carta antiga do editor do autor, Pierre-Jules Hetzel, onde ele rejeitava o manuscrito e ainda escreveu:

Estou surpreso e arrasado por escrever isso. Eu esperava algo melhor. Neste trabalho não há nenhum fato referente ao futuro que tenha uma solução, nenhuma crítica que já não tenha sido feita.

Hetzel acusou o trabalho de ter um estilo de um "tabloide, sem vida e sem brilho. Paris no Século XX tem as características já conhecidas de Verne no texto, como as descrições detalhadas das tecnologias usadas ou encontradas pelos personagens, algumas tiradas de bom humor, porém é um livro que pinta um futuro opressivo, injusto, onde o leitor não encontra as aventuras emocionantes por lugares exóticos, mas sim uma sátira social.

Jules Verne acabou desencorajado de publicar o livro e o guardou no cofre, voltando aos tons aventurescos. Seu próximo livro foi o grande clássico Viagem ao Centro da Terra, talvez seu livro mais conhecido. Quando Paris no Século XX foi publicado, a audiência ficou fascinada com a visão de Verne sobre o futuro, que no romance é nos anos 1960. Sendo um grande observador de seu tempo, Verne visualizou avanços científicos e sociais, como o feminismo, o crescimento dos subúrbios e periferias, o ataque aos departamentos de humanidades nas universidades e a mercantilização da educação. O protagonista é um poeta amargurado que vê uma sociedade preocupada apenas com dinheiro.

Consigo compreender a visão de Hetzel ao renegar o livro na época em que Verne lhe entregou o manuscrito. Se hoje o nome de Jules Verne é praticamente uma instituição literária, isso deve e muito ao trabalho de seu editor de saber lapidar a obra e publicá-la para o público certo. Na época de Verne, havia um tecno-otimismo no ar com as maravilhas científicas que surgiam todos os dias. Respirava-se um ar de progresso, ainda que muito desse ar se valesse do colonialismo selvagem na África, nas Américas e na Ásia, e via-se o século XX como um arauto da modernidade.

Para o mercado literário da época, o livro de Verne seria uma bomba e talvez tivesse sido um grande fracasso na vida do autor. Quem sabe Verne não fosse o grande nome de hoje? Hetzel como sendo seu editor e antenado com o andar da carruagem, sabia que aquela visão pessimista do mundo, a solidão do ser humano e a valorização do lucro sobre as pessoas não agradaria ao público. O editor fez o trabalho dele. E o editor tem a consciência de que mesmo o melhor escritor também pode produzir obras medíocres. Não é o fim do mundo.

A visão que algumas pessoas têm do editor é que ele é um carrasco dotado de uma caneta vermelha que vai podar a imaginação do escritor e tornar seu livro uma colagem sem sentido. O editor não é o inimigo do autor. Existem sim muitos percalços na vida de quem escreve, muito inimigos como a auto-sabotagem, mas o editor é seu braço direito. Ele está vendo o livro pelo olhar de um profissional e vai apontar os pontos altos e fortes da história para que ela fique cada vez melhor.

Esse mito de que o escritor é um ser sagrado cuja inspiração é soprada por deuses em seus ouvidos e que sua obra é santificada e não deve ser tocada apenas atrapalha a profissionalização da escrita e do mercado, principalmente para os autores nacionais que padecem na competição com os escritores traduzidos. E agir de maneira antiprofissional é ter seu nome manchado por uma postura que apenas o afastará das salas dos editores. Quem vai querer trabalhar com um escritor que brada CENSURA na primeira crítica ao seu trabalho?

Por isso, se nem Verne escapou do escrutínio de seu editor, pense com carinho nas críticas e observações que recebe do seu. O editor está ali para te ajudar, não para acabar com seu trabalho.

Até mais!

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Comentários

  1. Como o editor deixou passar Vinte mil léguas submarinas? hahaha Eu amo Viagem ao Centro da Terra (tanto que tenho 2 edições diferentes), estou com Cinco semanas em um balão na pilha do "ainda vou ler", mas vinte mil léguas foi arrastado demaaais pra mim. Foi quase uma questão de honra concluir.

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