Jeanie Boulet e a representatividade de personagens com HIV

Nos longínquos anos 1990, havia uma série de TV que mostrava o dia a dia de uma equipe de médicos em um pronto-socorro, chamada ER (no Brasil passava na Globo com o título Plantão Médico e com o título original no canal Warner). Assisti fielmente a, pelo menos, umas 9 temporadas. Mas uma personagem que me marcou entre tantos bons personagens na época, foi a fisioterapeuta e médica assistente Jeanie Boulet. Ela não foi a primeira personagem de TV com HIV, mas foi a primeira a não morrer e a levar uma vida produtiva.

Jeanie Boulet e a representatividade de personagens com HIV

No começo dos anos 1980, a doença que ficou conhecida como AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Humana), causada pelo vírus HIV, era relacionada à comunidade gay, (chamada inicialmente de GRID Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays) e, posteriormente, aos profissionais do sexo e aos dependentes químicos. Acreditava-se que a doença era uma "punição divina pela imoralidade". Os três grupos acabaram se tornando "vilões" da epidemia e foram retratados em filmes e séries de TV de maneiras equivocadas e estereotipadas. Ainda hoje, quase 40 anos depois de declarada a epidemia de AIDS no hemisfério norte, muitas pessoas desinformadas associam o vírus HIV e a AIDS à comunidade LGBT. O estigma na cabeça de alguns ainda continua, aliado ao preconceito e à má representação na mídia, que abusou de imagens assustadoras de pacientes em estágios finais de AIDS para causar medo na população.

O primeiro filme relacionado ao tema foi feito pela rede NBC, em 1985, chamado An Early Frost, onde a rede perdeu meio milhão de dólares de anunciantes que discordavam o filme, em que um advogado gay e soro-positivo precisa contar isso à família. Produções independentes já vinham pipocando antes dessa data. A partir de 1987, o tema entrou em vários enredos de TV no horário nobre. O que todos estes enredos tinham em comum, porém, era o fato de sempre relacionar AIDS e o vírus HIV à comunidade gay. E branca.

Mesmo no começo dos anos 1990, isso ainda era perpetuado. Lembro bem dos meus colegas babacas de escola que, para ofender os outros, chamavam de "aidético", já que ele assumia um tom de sinônimo para "gay". O assunto também parecia bastante distante nas nossas aulas de educação sexual. Diziam que era uma doença sexualmente transmissível, mas não se falava do vírus, dos sintomas, nem de pessoas que acabaram contraindo o HIV em transfusões de sangue, como Isaac Asimov, ou em relações heterossexuais. Era um tabu falar da doença, como se apenas mencionar as quatro letras tornasse a pessoa um HIV positivo.

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Em 1992, o filme que contava a história de Alison Gertz foi lançado. Something to Live for fala como Alison, então com 16 anos, foi contaminada após sua primeira relação sexual e como ela enfrentou preconceito de namorados e até de parentes. Alison tornou-se uma voz presente na mídia e nas escolas, onde conversava com adolescentes que estavam iniciando suas vidas sexuais e ajudou a derrubar vários tabus que relacionavam a AIDS à comunidade gay. Alison morreu no mesmo ano do lançamento do filme, devido à uma pneumonia relacionada à AIDS, com apenas 26 anos.

O filme ganhador do Oscar, Philadelphia, levou o tema ao grande público do cinema e desafiou a discriminação e o tabu. Para algumas pessoas, era a primeira vez que o tema era exposto e discutido nas casas das pessoas. O filme foi um dos primeiros longas comerciais a tratar de homossexualidade e homofobia. E tal como o advogado homofóbico do filme, muitas pessoas passaram a enxergar os doentes e aqueles afetados pelo HIV como indivíduos, como seres humanos.

Até aqui o que temos são vários personagens brancos. E ainda que Alison Gertz (branca) tenha mostrado que heterossexuais podiam contrair a doença, ainda havia o estigma de que essa era uma "doença de gays". Mas em 1997, uma personagem entraria para o elenco da série ER. Era Jeanie Boulet, interpretada pela atriz e cantora Gloria Reuben, fisioterapeuta e médica assistente do pronto-socorro que descobre que é HIV positivo e mudaria a percepção do público.

Jeanie aparece lá pela metade da primeira temporada da série. O cirurgião do pronto-socorro, Peter Benton, precisa de alguém para cuidar da mãe idosa em casa enquanto ele trabalha. Jeanie é fisioterapeuta e aceita trabalhar alguns dias por semana na casa da senhora Benton e, com o tempo, começa um relacionamento com Peter, ainda que ela seja casada há alguns anos com um segurança, Al Boulet. Nessa época, a audiência subiu e as pessoas corriam para casa para assistir Peter e Jeanie.

Quando Al é internado e descobre que tem HIV, Jeanie faz o exame. Ela também avisa a Peter, com quem não sai mais, que ela pode ter sido infectada pelo marido, pedindo que Peter também faça o exame, ainda que tenham se protegido. À essa altura, Jeanie tinha conseguido um cargo de médica assistente no pronto-socorro e após mais alguns episódios, Jeanie descobre ser HIV positivo e decide não contar para seus colegas no trabalho após conversar com um paciente na clínica do hospital onde trabalhava. Ele começou a ser colocado em funções de menor importância até ser demitido.

Foi uma surpresa para o público ver aquele mulher negra, casada, que trabalhava e vivia sua vida normalmente, estar infectada com o HIV. A audiência foi bombardeada com estereótipos por décadas, onde eles estavam? Na verdade a série estava ilustrando a realidade, pois este era o perfil da maior parte dos infectados nos Estados Unidos na época: mulheres negras, casadas, na faixa de 24 a 45 anos de idade, que foram infectadas por seus companheiros. Enquanto a comunidade gay aprendeu rápido a usar camisinha para se proteger do contágio, os heterossexuais acreditavam que estavam protegidos e isolados, especialmente os casados, tanto que muitos ainda não usam camisinha. Jeanie foi infectada pelo marido que chega a admitir que tinha perdido a conta de quantas vezes traiu a esposa.

Jeanie mostrou ao público que o HIV não era mais uma sentença de morte que a mídia tinha perpetuado por tanto tempo. Já na época da série havia medicação eficaz e que foi melhorada e potencializada ao longo do tempo para chegar no coquetel atual. Jeanie teria que tomar vários cuidados, mas o principal entrave encontrado foi no trabalho. Quando o doutor Greene, residente chefe, descobre que Jeanie tem HIV - fazendo isso de maneira ilegal, diga-se de passagem - ele a afasta do trabalho com o público, fazendo medição de sinais vitais e triagem. Depois, com a desculpa de que faltava dinheiro no pronto-socorro, Jeanie é mandada embora, mas com a ajuda de advogados envolvidos na luta contra o HIV e o preconceito, ela é readmitida, provando que foi por preconceito.

Oliver Hampton, de How to Get Away with Murder.
Oliver Hampton, de How to Get Away with Murder, é um personagem na esteira de Jeanie, que é HIV positivo, mas não sofre o estigma e o preconceito, vive sua vida e se envolve nos cambalachos dos colegas na série.

Outra coisa muito importante: a série mostrou Jeanie trabalhando normalmente, paquerando, se divertindo com os colegas de trabalho, levando uma vida normal. Pouco antes de sair da série, na sexta temporada, Jeannie tinha adotado um bebê com HIV e se casado novamente. Quando a gente fala e repete e reitera a importância da boa representação é simplesmente mostrar as pessoas vivendo suas vidas. Ela terá dificuldades na vida como todo mundo, mas é importante mostrar essa pessoa superando as adversidades ou convivendo com elas e levando suas vidas, porque é o que as pessoas fazem. Elas vivem.

O sucesso das medicações e terapia antirretroviral e um maior acesso a elas, aliado à redução de mortes e infecções, gerou uma mudança na forma como se representava personagens com HIV na mídia a partir dos anos 2000. Infelizmente o número de personagens que sejam HIV positivo continua baixo, tal como na época de Jeanie, mas Jeanie foi uma personagem que abriu o caminho para uma melhor representação e para que personagens interessantes surgissem sem que suas vidas girassem em torno do HIV e do medo da AIDS. A UNESCO inclusive possui um manual sobre como melhor representar pessoas com HIV na mídia, com download gratuito.

Jeanie agiu com responsabilidade após descobrir o HIV: ela fez o exame, seguiu seu tratamento, avisou o parceiro ou parceiros e ainda derrubou tabus com o público. A atriz fez uma participação especial na série em 2008, onde ficamos sabendo que ela trabalha com jovens HIV positivo como conselheira. A atriz Gloria Reuben tornou-se ativista por conta de seu trabalho como Jeanie na série e trabalha com comunidades negras e latinas nos Estados Unidos.

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Até mais!

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Mitos e verdades sobre a AIDS - Estadão
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