Se Star Trek acertou na representação de sua mulheres, ela também foi certeira em algumas discussões e representação de personagens masculinos. Não foi tudo absolutamente perfeito, é óbvio, como as discussões na série clássica de algumas tripulantes largarem seus postos para começarem família ou o tapa que o dr. McCoy deu em uma grávida. As discussões mais maduras foram feitas nas séries seguintes e foram muito bem feitas.
A humanidade em Star Trek passou por uma profunda mudança de mentalidade. Foi uma mudança que demorou, pois ainda vemos um pouco de machismo e xenofobia em Enterprise e até na série clássica houve preconceito com Spock. A chegada dos vulcanos na Terra foi o evento que pacificou o planeta, que mostrou à humanidade que nós não estamos sozinhos no universo e nas décadas seguintes a pobreza, a miséria, as guerras, as doenças, foram eliminadas. É utópico, claro que é, mas nos dias de hoje, mais do que nunca, nós precisamos dessa utopia.
Essa mudança de mentalidade, obrigatoriamente, precisava ser acompanhada de uma mudança de comportamento. Como explicar a um vulcano que uma mulher ganha um salário menor apenas por ser mulher? É ilógico. Como não vemos nas séries como foi esse longo período de adaptação, desde a chegada dos vulcanos ao voo da primeira Enterprise, não tem como saber como as mudanças foram implementadas, mas foram cem anos que, sem dúvida, foram determinantes para o surgimento de uma nova humanidade. Não há vergonha no exercício de suas sexualidades, inclusive no primeiro casal abertamente gay das séries, Culber e Stamets, de Discovery.
Ainda que existam garanhões pelas naves, como Riker e o próprio Kirk, as mulheres não sofrem slut shaming, não têm sua competência associada a dormir com este ou aquele almirante, nem têm sua vida sexual esmiuçada pelos colegas. Elas são membros da equipe e não têm suas ideias roubadas pelos colegas ou passam por longas explicações sobre suas próprias áreas de atuação. Estes homens podem, inclusive, escolher não ter relacionamentos esporádicos, sendo bem reservados, como é o caso de Picard e Sisko.
Mesmo aqueles casados, como o chefe O'Brien, apresentam comportamentos diferentes ao que muitas vezes vemos aqui no mundo real. Sua esposa Keiko é botânica e estava infeliz em Deep Space Nine quando a escolinha da estação fechou e ela ficou sem ter uma ocupação. Mesmo tendo que ficar longe da filha e de Keiko, o chefe O'Brien a indicou para uma longa expedição em Bajor que precisava de uma botânica chefe. Ele preferia ficar longe dela ao vê-la infeliz. E essa é uma mensagem poderosa para qualquer garoto que estivesse assistindo à série na época e nos dias de hoje.
A amizade de O'Brien com Bashir, por exemplo, é outro grande exemplo de companheirismo e parceria. Durante a ausência de Keiko, os dois ficaram muito próximos, dividindo longas horas na holosuítes do Quark em batalhas e aventuras. Quando Keiko retornou à estação durante uma pausa do trabalho, ela não se importou em deixá-los se divertir novamente. Existem muitas amizades não-tóxicas dentro das séries, que mostram que um companheirismo não competitivo é possível e mesmo que um deles cometa um erro, não vai ter passada de pano. Errou, pagou, se desculpou.
Uma grande lição sobre consentimento veio do tenente Tom Paris, em Star Trek Voyager. Naquele episódio B'Ellana Torres, engenheira-chefe, sofria de um desequilíbrio químico no cérebro, que a fez querer transar com Tom como forma de cumprir uma demanda orgânica urgente. Era isso ou ela morreria. Mesmo que ele sentisse uma atração por ela, mesmo querendo ficar com ela, Tom sabia que B'Ellana estava desequilibrada e que aquilo não era certo. Isso é uma lição sobre a noção de consentimento de primeira.
Riker e Deanna apareceram recentemente na série Star Trek Picard. Mas a história deles é longa, desde antes do começo de A Nova Geração. O romance dos dois ficou em animação suspenda durante algumas temporadas, mas era visível o carinho um pelo outro, a preocupação e atenção de um pelo outro. Mesmo assim, ambos tiveram vários relacionamentos ao longo das temporadas e nunca houve uma briga, ciúme, discussão ou chilique de nenhum deles. Dá até para entender o relacionamento de ambos como sendo aberto, para depois se casarem, terem filhos e se mudaram para Nepenthe. Quando foi necessário se vestir de maneira sensual para uma negociação diplomática em um planeta comandado por mulheres, Riker não reclamou e até curtiu.
O capitão Pike, em Star Trek Discovery, foi um ótimo exemplo de personagem masculino. Aliando bons roteiros com a atuação de Anson Mount, Pike é novo na Discovery e poderia ter sido arrogante, um déspota que sairia distribuindo ordens, já que ele é o cara agora. Mas não. Ele se apoia na experiência da tripulação, ouve seus oficiais, deixa a Enterprise na mão de sua primeira-oficial, algo que escandalizou a audiência nos anos 1960, e enfrenta o destino desfigurante e incapacitante que terá pela frente com coragem e confiança. Se a segurança de todos sob o seu comando se apoia nesse futuro, ele a aceita de braços abertos.
A própria personalidade erudita e reservada do capitão Picard esconde um homem determinado, corajoso e que aprendeu ao longo do caminho a se tornar um ser humano melhor. A despeito de sua juventude vida loka, o capitão se mostrou um homem sensível, esclarecido e que também precisou de ajuda quando foi sequestrado e assimilado pelos Borgs. Ele chorou e desabafou, rolou na lama e se embebedou com Robert, seu irmão mais velho, os dois se perdoando pelos anos de desentendimentos. Em vários episódios vemos a sensibilidade de Picard aflorar e essa é uma mensagem poderosa, de que está tudo bem ser sensível e chorar e não seguir um padrão tóxico de masculinidade.
A maioria dos maus exemplos de masculinidade nas séries vem de alienígenas, como os Ferengi, o ápice da misoginia, que impedem mulheres de terem lucros, de usarem roupas e de saírem às ruas. Mulheres não participam do Alto Conselho Klingon e em Enterprise existem alguns momentos em que o comandante Tucker derrapa no motor de dobra e na igualdade de gêneros. Worf é bem machista (e mala) em alguns momentos, como sua insistência em se casar com K'Ehleyr, quando ela não ligava para a tradição.
Acho que no geral o saldo é muito positivo em Star Trek, mas é preciso reconhecer que ela foi praticamente branca e hetero. É justamente esse público que precisa rever seus princípios e conceitos relacionados à masculinidade e eles poderiam aprender com os personagens se vissem Star Trek como algo mais além de navezinhas e ETs. Roddenberry queria uma humanidade perfeita. Para falar dos problemas da nossa sociedade a discussão deveria ser feita com os alienígenas e foi. Star Trek não é uma máquina do tempo, mostrando como a raça humana será no século XXIV, mas sim uma grande metáfora sobre nossos problemas, nossos dilemas, a resolução deles e de como podemos ser melhores. Em dias atuais, com tanta desesperança e medo, nada melhor do que ver uma raça humana unida e que luta por um bem melhor. É essa a utopia que precisamos manter no horizonte.
Vida longa e próspera! 🖖🏼
Leia também:
Trek’s Non-Toxic Male Friendships - Women at WarpThe (non)toxic masculinity of Star Trek: Discovery’s Captain Pike - ShowSnob
How Star Trek Boldly Warped Away From Toxic Masculinity: The Original Series - The Mary Sue
Mr. Spock: The 'Mystery of Masculinity' Embodied - NPR
Olá, Capitã! Sou uma grande fã! Tenho sentido falta do "Espada e Planeta". Vocês mudaram de endereço? Meus podcasts deram xabú!
ResponderExcluirDe qualquer forma, adoro seus livros (sim. Compre-os no Amazon!). Adorei. Vc escreve muito bem. PArabéns. Desculpe não poder contribuir mais, mas estou em contenção de despesas.
Um grande abraço!!
Oi, Rosangela!
ExcluirMuito obrigada pela audiência e pelo carinho! 🤍
Então, o Espada & Planeta tá suspenso, infelizmente. Mas eu sugiro que você lote a caixa de comentário dos episódios e aporrinhe o Marcelo pra ele voltar com o programa. 😁 Pode dizer que fui quem mandou. Hahahaha!
Fico feliz de ter você por aqui, saudações da capitã!
Oi... Passei aqui pois procurava argumentos em uma discussão com fãs de Kirk... Bom descobri que fora você não existe informações sobre "machismo do kirk" ou star trek e o machismo.... Acho que precisamos de mais disso!! Eu sei ser idiota por gritar no meio de surdos, mas se as pessoas não enxergarem que andar de mini sai na ponte comando não é valorizar o sexo feminino!!! Espero que possamos ter no futuro mais como você: - blogs dispostos a discutir o relacionamento com suas amadas séries, vendo os defeitos que existem nesse amor.... Parabéns pelo pequeno texto....
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