Quando olhamos para Star Trek algo salta a vista imediatamente: mulheres como almirantes, capitãs, oficial médico-chefe, chefe de segurança, embaixadoras, terroristas, oficial de ciências, conselheira, guerreira klingon, cientistas, pilotos. Estas mulheres estão em seus postos trabalhando e ninguém questiona porque elas estão lá, se deram para o chefe, se estão lá por serem bonitas ou que estão roubando postos de trabalho dos homens. Em Star Trek o feminismo não é mais necessário porque ele deu certo. A sociedade de Star Trek é baseada na nossa sociedade, esta aqui onde mulheres morrem por serem mulheres e têm suas competências e habilidades questionadas por serem mulheres.
No filme Star Trek Primeiro Contato, a conselheira Troi e o comandante Riker explicam para Zephram Cochrane a importância de seu voo com a Phoenix, a nave experimental com motor de dobra que chama a atenção dos Vulcanos. Este voo leva ao primeiro contato com uma espécie alienígena inteligente e inaugura uma nova era para a humanidade, de paz, onde miséria, guerras e doenças acabam.
Isso leva ao próximo passo: a aceitação da diversidade, igualdade de direitos para as minorias e uma sociedade igualitária onde todas as pessoas possuem as mesmas oportunidades. Como Zephram Cochrane poderia explicar para uma sociedade lógica e fria como os vulcanos que pessoas de gênero, cor ou orientação sexual diferentes ganham menos e sofrem mais violência? A própria situação de primeiro contato com uma raça alienígena teria que tornar a raça humana mais humilde para a vastidão do espaço e para as possibilidades que se abrem para nós. As diferenças que hoje nos matam são fruto de uma sociedade que tem medo. Medo do diferente, medo de aceitar, medo do desconhecido. E conviver com uma raça alienígena como os vulcanos reduziria esse medo a pó, já que os vulcanos são lógicos, muito avançados e evoluídos.
É muito estranho ver como tem fã conservador de Star Trek, a franquia que mais colocou minorias em posição de destaque e liderança sem questionar sua presença. Não é de estranhar, portanto, que capitão Sisko e capitã Janeway sejam muito odiados por fãs que não costumam aceitar a diversidade. Sisko é negro, Janeway é mulher. A própria série Star Trek Voyager é odiada por um pelotão misógino que criou todo o tipo de piadas machistas para Janeway e sua nave, perdidas no quadrante delta.
Voyager é tida como a série de TV mais feminista que já existiu e uma que mais subverteu arquétipos em seus personagens. Na série original, em A Nova Geração e em Enterprise, a representatividade feminina não é tão vibrante e importante para seus respectivos enredos como são em VOY e DS9. As primeiras três temporadas são bastante sofríveis em alguns aspectos, mas a entrada de Sete de Nove a partir da quarta temporada muda o jogo. Voyager passa a ser comandada por três das mulheres mais incríveis da ficção científica - Janeway, Torres e Sete de Nove. Em um primeiro momento, muita gente associou Janeway com uma figura materna, por querer cuidar e proteger sua tripulação em um espaço hostil e não mapeado. Porém, a capitã teve seu arquétipo subvertido. Sim, ela enquanto líder vai proteger sua nave e sua tripulação e assume Sete de Nove como um projeto, uma forma de manter sua própria humanidade tão longe de casa, mas ela não é mãe de ninguém, assim como Picard não é pai de ninguém na Enterprise.
Jadzia Dax - Deep Space Nine |
Além disso - e aqui entra o motivo pelo qual tantos caras odeiam Voyager - os quatro personagens masculinos de importância da ponte são secundários. Chacotay é um líder e o imediato abaixo de Janeway e desempenha seu papel sem questionar ou desmerecê-lo, mas exerce sua função em questionar ordens e decisões dela que ache equivocadas. Tuvok é aquele que reconhece a liderança de Janeway e não a questiona ou rouba seu papel de líder. Paris é o garoto que é bom no que faz, mas que foi punido por sua própria imaturidade e infantilidade. É na Voyager, sob a liderança de Janeway, que ele cresce, amadurece e encontra seu propósito na vida, casando-se depois com Torres, a chefe da engenharia. Ninguém deu piti por ser um subalterno, ninguém perdeu o status de 'homem' por causa disso. E o alferes Kim é jovem, imaturo, comete muitos erros, está na ponte para aprender.
Em outras séries, e especialmente em Deep Space Nine, vemos mulheres em posição de destaque e se relacionando livremente, tomando decisões, dando ordens, resolvendo conflitos, sem que suas capacidades fossem diminuídas. A importância de ver essas mulheres em tais cargos já foi várias vezes explicada, inclusive por famosas como a atriz Whoopi Goldberg e sua inspiração em Uhura, na ponte da Enterprise.
Nem tudo é perfeito, claro. As séries apresentaram vários momentos de objetificação pura e simples, inclusive no sofrível e ruim filme Star Trek Into Darkness. Na série original tivemos vários casos de mulheres objetificadas, com roupas curtas e coladas, pele exposta, até mesmo um caso de agressão a uma mulher grávida cometido pelo Dr. McCoy. Sete de Nove, uma personagem de grande importância para a trama de STVOY também foi hipersexualizada e chegou a desmaiar no set quando o collant que usava apertou demais seu pescoço. A atriz falou diversas vezes sobre como usar aquela roupa e os saltos eram extremamente desconfortáveis.
Conselheira Troi também foi uma personagem sexualizada em a Nova Geração e a atriz Marina Sirtis chegou a falar sobre como sua personagem era usada pela produção. Conselheira Troi passou de uma personagem central e inteligente para uma "eye candy", um rostinho bonito, ou como a própria atriz comenta, "virei uma palmeira no meio da ponte". No primeiro episódio ela usa um uniforme da Frota Estelar e depois um macacão apertado, de decote cavado. E nas próximas temporadas vários vestidos justos, onde a atriz precisava usar espartilho e um sutiã apertado para caber neles. Foi apenas no final de A Nova Geração, lá pela sexta temporada (e foram sete), que pediram que ela provasse um uniforme da Frota Estelar e disseram: ela ficou bem nele, por que ela não usou um uniforme nos últimos sete anos?. Foi quando sua personagem passou a liderar times avançados e a conversar sobre tecnologia espacial com os colegas.
Almirante Alynna Nechayev - Star Trek A Nova Geração |
Sei que muita gente não entende porque a representatividade é tão importante ou porque é preciso discutir feminismo em obras de entretenimento. E é fácil achar a razão: são pessoas que nunca tiveram problema em achar personagens com os quais se identificar. Se enxergar no mundo importa, pois isso demonstra sua existência e as infinitas possibilidades que a aguardam à frente. Quando Whoopi viu Uhura na ponte da Enterprise, sem ter sua posição, cor ou gênero questionados, isso mostrou que negras não precisam estar em cozinhas ou lavouras quando representadas na TV ou no cinema. Elas podem ser oficiais da ponte, elas podem explorar o espaço, elas podem ser quem elas quiserem. E se podem ser na ficção, podem ser na vida real também.
Quem assiste a um filme ou série, ou lê um livro onde seu próprio arquétipo está representado acha que é tudo uma grande bobagem. Porém isso é uma consequência do seu privilégio. Se você assiste as Caça-Fantasmas ou Star Trek Voyager e acha chato, bobo, que é mimimi de feminista, é seu privilégio esperneando porque não é você ali sendo representado. Ao invés de encarar estas obras como uma afronta, por que você não abraça as narrativas sobre outras pessoas além de si mesmo e aprende alguma coisa com elas?
Se você aprende a ver mulheres em posição de destaque sem questionar suas competências, sem encarar como uma afronta à sua masculinidade, sem achar que elas estão lá por beleza ou sexo, vai aprender a ver desta mesma maneira no mundo real. Estamos longe da sociedade de Star Trek, porque nos dias de hoje tem homens que não entram em ônibus, táxis e aviões comandados por uma mulher. Ninguém perde com maior inclusão e respeito à diversidade, ao contrário, todos ganham.
Até mais!
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Parabéns pelo texto "show". Analisou de maneira perfeita o papel das mulheres no Universo Star Trek. Antigamente as séries passam regularmente na "Tv aberta", acredito que se voltassem, ou nunca tivessem parado teríamos uma nova geração com um pensamento um pouco mais evoluído.
ResponderExcluirÓtimo texto. Vai me ajudar muito em uma série de resenhas que estou escrevendo para as comemorações dos 50 anos de Star Trek. Salvando o link como favorito.
ResponderExcluirIncrível o texto, Sybilla. Parabéns, eu não sabia que Star Trek tinha mais esse ponto positivo =)
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