Resenha: O ano da graça, de Kim Liggett

Eu não sabia bem o que esperar de O ano da graça. No começo, achei que seria um livro bem genérico, vindo na esteira de sucesso de Tha Handmaid's Tale, com livros sobre revoluções feministas. E ele veio nessa esteira, sem problemas. Mas são as decisões de autora sobre os rumos da história que tornam o livro diferente do que eu estava esperando. E isso foi ótimo.

O livro
O Condado de Garner é uma sociedade patriarcal que exerce a misoginia em níveis estratosféricos. Desde cedo, as meninas aprendem que são uma ameaça à sociedade e que são dotadas de uma magia perversa capaz de enfeitiçar os homens. Para que elas se livrem dessa "magia maligna", ao completarem 16 anos e depois de serem dadas em casamento por seus pais, elas são enviadas para um tipo de acampamento onde permanecerão durante um ano, o chamado Ano da Graça.

Resenha: O ano da graça, de Kim Liggett

A protagonista e narradora é Tierney, uma jovem que gostaria de ter o controle sobre sua própria vida, que tem suas próprias visões sobre como as mulheres deveriam se unir contra a opressão, mas a sociedade do condado faz de tudo para que as mulheres não se unam. Elas nem ao menos podem se reunir livremente, já que são vistas como perigosas, portadoras de uma magia sinistra que vai desviar os homens do bom caminho.

É muito fácil se identificar com a Tierney, pois seus pensamentos e medos também nos são comuns. Quantas vezes tivemos que viver pela causa dos outros, quantas vezes tivemos que atender às expectativas dos outros? Ela se atormenta pela impossibilidade de viver sua própria vida e esse é um medo das mulheres em geral. Há uma série de comportamentos que precisamos seguir para sermos aceitas na sociedade e Tierney não foge disso.

Até um determinado momento da leitura eu achei que a autora seguiria um roteiro bem estabelecido para distopias juvenis. Mas para minha surpresa, a autora consegue tirar sororidade do que parece ser um terreno infértil para isso. Consegue colocar amor e união numa sociedade em que as mulheres precisam se dividir para poderem sobreviver. E não tem triângulo amoroso, VIVA!

Somos chamadas de sexo frágil. Nos martelam com isso todo domingo na igreja, explicam que é tudo culpa de Eva por não ter expelido a magia quando pôde, mas ainda não entendo porque as garotas não tem escolha. Claro, temos acordos secretos, sussurros no escuro, mas por que são os garotos que decidem tudo? Até onde sei, todos temos coração. Todos temos cérebro.

Este é o Ano da Graça de Tierney e devo dizer que me chocou o horror que boa parte dessa experiência foi. As jovens poderão experimentar a liberdade irrestrita pela primeira vez na vida e depois de tantos anos de repressão, elas acabam se voltando umas contra as outras, afinal foi o que a sociedade lhes ensinou. Tierney aprendeu muitas técnicas de sobrevivência com seu pai, portanto tem mais condições que qualquer pessoa de ajudar aquelas moças, mas elas acreditam firmemente que estão desenvolvendo a magia e que isso é a desculpa perfeita para agirem com violência. E tem muita violência.

Várias metáforas estão presentes na narrativa, como as mulheres sendo vistas como meros pedaços de carne, o ódio voltado contra o feminino, a sociedade que quer que as mulheres sejam adversárias, pois sabem o que pode acontecer se elas se unirem. Há também bastante violência e relatos vívidos a respeitos. A leitura flui muito rápido e em alguns momentos enche os olhos de água, pois você se sente no lugar de algumas daquelas moças. Ainda que haja um relacionamento de Tierney com outra pessoa na história, ele não vai definir os rumos de sua vida.

O final foi inesperado e que coube naquela narrativa, dando um fio de esperança para as moças tão subjugadas do condado. A autora não explica muita coisa sobre o condado em si, onde fica ou quando foi estabelecido e senti falta de um melhor nível de detalhe nesse sentido. Entretanto, a jornada das personagens faz você querer continuar, ainda que eu sinta que algumas coisas correram rápido demais quando a gente chega perto do final.

A tradução ficou na mão de Sofia Soter e está ótima. Não li o livro físico, li o ebook, mas não vi problemas de revisão ou diagramação. As ilustrações são de Priscila Barbosa.

Nos dizem que temos o poder de fazer homens adultos saírem de suas camas, deixar garotos alucinados e enlouquecer as esposas de tanto ciúme. Acreditam que nossa pele emana um afrodisíaco poderoso, a essência potente da juventude, de uma menina à beira de se tornar mulher. É por isso que somos banidas aos dezesseis anos.

Obra e realidade
Mesmo que o livro seja voltado para um público juvenil ou jovem adulto, é um tema muito maduro e atual e que vai agradar a galera mais velha. Até porque não tem nada no livro que nós já não conhecemos. A autora soube colocar essas críticas na história sem parecer didática ou forçada e você vai parar a leitura algumas vezes para dizer "nossa, verdade!", porque o condado é aqui. Podemos não ser banidas aos 16 anos, mas a sociedade coloca em nós a culpa pelos infortúnios que acometem os homens.

Kim Liggett

Kim Liggett é uma escritora norte-americana. Nascida na área rual de Nova York, foi backing vocal de várias bandas de rock dos anos 1980.

PONTOS POSITIVOS
Metáforas modernas
Tierney
Bem escrito
PONTOS NEGATIVOS

Violência


Título: O ano da graça
Título original em inglês: The Grace Year
Autora: Kim Liggett
Tradutora: Sofia Soter
Editora: Globo Alt
Ano: 2019
Páginas: 356
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Para quem não esperava muito do livro, eu tive que conter as lágrimas no final. Foi uma grande jornada ao lado de Tierney, ainda que ela tenha me feito passar raiva algumas vezes. É um livro com violência explícita contra as mulheres, com discussões que cabem no mundo criado pela autora e aqui fora. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!



Até mais!

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Comentários

  1. Eita, fiquei interessada. Essa não é a primeira menção que encontro a respeito do livro. Acho que vai pra lista de leitura.

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    1. Me espantou muito mesmo, sabe? Eu esperava uma historinha água com açúcar e OLHA...

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  2. Muito interessante o tema do livro. Nunca tinha ouvido falar dele, mas fiquei interessada em ler.

    www.vivendosentimentos.com.br

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