A incrível história dos escritores que não querem ler livros novos - e se ofenderam com a sugestão

Às vezes eu penso que nada mais me surpreende no mundo literário depois de tantas tretas - algumas desnecessárias - rolarem. Aí vem uma nova e prova que eu estava errada.




No dia 4 de fevereiro, a escritora de livros para jovens adultos, Sarah Nicolas, disse no Twitter:


Por favor, eu imploro, se você quer ser um autor publicado leia uma p**** de um livro lançado nos últimos 5 anos. Comece com um só. Estou implorando.

É um conselho mais que válido. É uma obrigação. Mas se você abrir a thread e ler as respostas e menções a esse tuíte, vai se espantar - ou não - com a grosseria, com os xingamentos e ameaças que ela vem recebendo por causa disso. Outros escritores como NK Jemisin e John Scalzi estão reforçando a mensagem de Sarah e também se questionam: o que ela disse de tão ofensivo?

Existe um certo mito em volta das habilidades de um escritor. Para algumas pessoas, este é um ser iluminado, cujas obras são sopradas aos seus ouvidos por deuses literários. É uma pessoa reclusa, que evita contato com os meros mortais e vomita obras-primas a toque de caixa. A pessoa tem um DOM (eita palavrinha perigosa), algo que a torna especial, portanto ela não precisa de ensinamentos, não precisa aprender nada, pois seu cérebro grandemente avantajado lhe garante a genialidade irrestrita.

Só que não.

Escrita é um ofício e como tal se ensina e se aprende. Você pode aprender a escrever bem seja para a redação do ENEM, seja para o relatório a ser entregue para o seu chefe. É possível aprender a escrever de maneira coerente, com começo, meio e fim. Se a pessoa vai se aventurar a escrever histórias de ficção, é outro papo, mas escrita você aprende. E não só aprende, você a aprimora. É o exercício constante da escrita que vai te levar a melhorar. Não é nenhum dom ou deus literário que sopra no teu ouvido. É você.

A segunda parte desse mito da divindade do escritor é a de que ele não precisa ler. É, dói ver essa mentira sendo ainda perpetuada por aí, porém infelizmente alguns ainda acreditam que para um escritor manter sua originalidade, é necessário se isolar de toda e qualquer influência. Pode até ler os clássicos, mas nunca, JAMAIS, se deixar "contaminar pela modernidade". O medo talvez seja de ter sua ideia super original e inovadora ser contaminada pelos escritos dos outros ou até ver sua grande ideia ser trabalhada por outros. Vamos então ler o que a autora de Comer, rezar e amar, Elizabeth Gilbert, tem a nos dizer sobre isso:

Quanto mais envelheço, menos impressionada eu fico com a originalidade. Ultimamente sou mais movida pela autenticidade. Se seu trabalho é autêntico o bastante, acredite-me, ele será original.

Vamos pegar como exemplo a Saga Crepúsculo. Sei que muita gente odeia. OK, nem eu gosto muito. Mas vamos ver o lado da autenticidade da autora. Ela pegou o mito dos vampiros - algo batido na literatura, usado até quase se esgotar a fonte - e colocou nele as suas impressões, a sua forma, a sua versão. Você tem o direito de não gostar do que ela fez, mas certamente reconhece que o Edward brilhando é trabalho de Stephenie Meyer. Ela não só é milionária hoje depois que seus livros viraram filmes, como ela também ganhou vários prêmios com a sua escolha ~polêmica~ de dar aos seus vampiros algumas características que a versão clássica não tem. Stephenie imprimiu em seus vampiros sua autenticidade.

A terceira parte do mito diz que se um livro vende muito, ele é ruim. Quem acredita que "livro da moda" só pode ser porcaria desconhece o fato de que grandes clássicos universais também foram best-sellers na época de seu lançamento. É aquela coisa da obra de circulação restrita que se torna famosa e subversiva feita por um escritor recluso que ainda é vendida como sendo uma receita de sucesso para você ser escritor. Errrr, não. Muitos bons escritores estão ganhando dinheiro com seu trabalho e, sinceridade, qual é o problema? Só se é um "artista de verdade" quando você morre na pobreza?

Imagine um cientista que não lê artigos científicos mais recentes. Pense em um médico que não lê os novos artigos do Journal of Medicine, porque não quer se "contaminar com a modernidade". Ele não saberá dos avanços científicos, nem das novas técnicas de cirurgias, nem do novo medicamento que visa combater o câncer ou da nova vacina contra uma doença mortal. O geólogo que não lê novos artigos vai continuar defendendo que as placas tectônicas não se movem, o biólogo que nunca leu artigos recentes vai dizer que a evolução não existe e daí por diante.

Um escritor é um cientista das palavras. Se eu não consumir vorazmente as palavras que uso para escrever, minha fonte vai acabar. Posso até escrever sobre o que eu sei, mas o que eu sei sobre o mundo sempre é limitado pela minha própria visão, pela minha criação, pela forma como eu vivo mundo. Eu leio o que os outros escrevem para enxergar o mundo pelos seus olhos e ver o que são capazes de criar e como observam os fenômenos ao seu redor. Se você enquanto escritor não quer ler o que vem sendo produzido, eu pergunto, o que você quer da escrita?

Não sei se esses mitos cairão algum dia. Até autores clássicos defendem que em literatura devemos sempre ler os livros mais velhos e não os recentes. Acho isso uma babaquice sem igual. Não se sabe como está o estado da arte se você não souber como ela vem sendo produzida. Se você quer entrar neste mercado e conquistar seu espaço, conquistar leitores, precisa saber como ele age, o que ele consome, encontrar seu nicho, agir por ele. Ninguém é uma ilha para viver isolado.


Até mais!


Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Excelente! Já passou da hora de geral parar com essa visão romantizada de que escrita é um dom e que o escritor basta a si mesmo. Pior, recusar-se a melhorar, a ler, a crescer e ficar reclamando que não é reconhecido.
    Minhas professoras, tanto no que chamávamos de "primário" quanto na época entre quinta e oitava série, já diziam: para escrever bem tem que primeiro ser um bom leitor.
    Há muitos "mitos", práticas e ideias correntes que precisam ser reavaliadas e mesmo jogadas na lata de lixo pois não mais se sustentam.
    Acompanhei a treta no Twitter e fiquei de cara como tem tanta gente com pensamento obtuso, sério.
    Uma boa semana para você!

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    Respostas
    1. Eu fico puta de ver muitos escritores que ainda acreditam nisso e se fecham para os trabalhos mais recentes. Se eles querem ser publicados, mas não sabem o que vem sendo publicado, querem escrever pra quem? E pra que?

      Bejas!

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  2. Sou cientista e ia citar a leitura de artigos, aí o texto vem e "Bum!". É exatamente o que penso. Como você pode saber como conversar com o tipo de leitor de hoje em dia se não souber o que está sendo escrito? Doideira!

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  3. Só fico pensando no coitado do Edgar Allan Poe, se esfalfou tanto para provar que a escrita exigia dedicação e trabalho (The philosophy of composition) e aí vem esses filhotes de Percy Shelley querendo ser os profetas. Escritores que não querem ler deixam muito claro em seus textos que falta que faz um livrinho de vez em quando, ôxi!

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  4. Um dos textos mais sensatos que já li! Achei excelente!

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