Quando se fala em literatura nacional, provavelmente, uma galera vai torcer o nariz. Eu sei bem disso porque quando começamos a estudar Machado de Assis e José de Alencar no colégio, o desagrado foi geral. Era uma leitura difícil, com muitos floreios e descolada da nossa realidade e do nosso tempo. E isso porque eu vim de um colégio que fomentava a leitura e a escrita desde as séries iniciais. Em um país que consome vorazmente a literatura especulativa estrangeira, é de se estranhar que, quando se refere aos autores nacionais, a maioria desconheça a produção.
O livro
O brasileiro consome muita produção especulativa de fora. Vibra com as caçadas de Sam e Dean Winchester, temia por Mulder e Scully nos casos bizarros, tremia com as esquisitices de Contos da Cripta. Mas quando o assunto é produção nacional de ficção especulativa, essa mesma pessoa desconhece a produção nacional. Pode até mesmo dizer que não existe tradição de fantasia, terror e ficção científica no Brasil.
É aí que entra a importância da coletânea Medo Imortal. A edição organizada por Romeu Martins chegou para mostrar que mesmo nossos autores mais clássicos, como Machado de Assis, também produziram ficção especulativa. Reunindo poemas, contos e uma novela, aqui temos 13 autores, 12 deles foram imortais da Academia Brasileira de Letras, mais Júlia Lopes de Almeida, que não integrou a academia apenas por ser mulher, sendo que tinha todo o talento para isso. Mesmo sendo indicada, quem virou imortal foi seu marido. Essa foi uma grande homenagem ao seu trabalho e legado.
Mais pavoroso fado
Não sonha a fantasia;
Por morto ser tomado
Alguém que ainda vivia;
Página 271
Os trabalhos nos trazem criaturas e monstros, o místico e o sobrenatural, atos indescritíveis de assassinos, e o detalhe, quase todos eles centrados em nossas terras. Tenho certeza que a leitura de contos assim na minha adolescência teria mudado minha visão a respeito da literatura brasileira. Produzidos entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, os contos são a nata da produção do período e também uma maneira de se ver a sociedade brasileira pelo viés do fantástico.
Afonso Arinos, Afonso Celso, Aluisio de Azevedo, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Coelho Neto, Fagundes Varela, Humberto de Campos, Inglês de Sousa, João do Rio, Julia Lopes de Almeida, Machado de Assis e Medeiros e Albuquerque e Júlia Lopes de Almeida são os autores selecionados para a coletânea. Machado e Júlia são os maiores representados, ambos com nada menos que seis obras. Em alguns casos, como de Aluisio Azevedo, há apenas uma.
Cada capítulo representa um autor novo e há uma breve introdução sobre sua vida no começo, o que é bem legal para quem conhece pouco dos nossos autores. Admito que eu conhecia menos da metade e de alguns eu nunca tinha ouvido falar. O contato mais recente que eu tive antes dessa coletânea foi com a obra da Júlia, na linda HQ lançada pela editora SESI-SP, Ânsia eterna, de Verônica Berta, que ilustrou três contos da autora.
Gostei muito do trabalho de Júlia, de Humberto de Campos e de Afonso Celso. É claro que os contos têm um estilo diferente do que estamos acostumadas, então é preciso levar em consideração a época em que foram escritos e saiba que em alguns deles vai ser uma leitura bem chatinha. Coelho Neto, por exemplo, fez com que eu me sentisse uma analfabeta funcional em alguns momentos. Há também que se considerar que o terror com o qual muitos autores trabalham nem sempre tem a ver com o sobrenatural. Machado de Assis, por exemplo, lidou muito bem com o horror da escravidão.

Começando com o capítulo há uma ilustração de cada autor, feita por Lula Palomanes. O trabalho gráfico da coletânea segue o padrão diabólico de qualidade da DarkSide e está incrível. Com pintura dourada nas laterais e capa com relevo, nas contracapas nós temos as ilustrações de Lula reunidas e uma fitinha dupla, verde e amarela, para marcar sua leitura. Encontrei um ou outro erro de revisão, como espaços duplos e maiúsculas não batidas, mas nada que realmente atrapalhe a leitura.
Obra e realidade
A tradição para a ficção especulativa brasileira foi deixada de lado na época da Proclamação da República, que queria romper seus laços com o passado e com a herança europeia. Então, se os estrangeiros, por volta dessa época, estavam imaginando viagens à Lua ou ao centro da Terra, ou invasões por marcianos, o Brasil quis se distanciar ao máximo dessa produção fantástica, aproximando-se do realismo e do naturalismo.O que não quer dizer que os autores não deram suas escapulidas, como essa coletânea inteira prova. Ainda que muitos entendessem esses contos e poemas como apenas experimentações, eles definitivamente fugiam do lugar comum do que vinha sendo produzido na época. O problema é que nas universidades e nos grupos de estudo em literatura prevaleceu o enaltecimento e o estudo de obras realistas. Nos últimos anos, felizmente, vem sido feito um resgate desse Brasil fantástico, tem-se produzido coletâneas como Medo Imortal, como Páginas do Futuro (com contos de ficção científica), além de uma intensa produção em revistas online, como a Mafagafo e a Trasgo. O Brasil tem sim tradição e grandes nomes produzindo, mas precisamos sair da bolha e chegar nos leitores.

Romeu Martins é um jornalista brasileiro. Publicou contos de ficção científica, fantasia e terror em várias antologias.
PONTOS POSITIVOS
Ilustrações
Autores clássicos
Pesquisa
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Leitura devagar
Ilustrações
Autores clássicos
Pesquisa
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Leitura devagar
Avaliação do MS?

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