Resenha: O roubo da história, de Jack Goody

Estou completamente apaixonada por este livro e irei defendê-lo! Jack Goody chuta a porta da história tradicional e derruba vários mitos a respeito da inventividade europeia. O antropólogo britânico apresenta um panorama da região do Mediterrâneo e sua comparação com a Europa Ocidental e afirma: muito do que nós assumimos ser criação europeia, na verdade, já existia ou era embrionária em vários outros povos, especialmente os do Oriente.

Parceria Momentum Saga e Editora Contexto

O livro
Se o Ocidente tivesse levado a sério Jack Goody, teria entendido melhor o desenvolvimento supostamente inexplicável da China, assim como o surgimento dos ❝tigres asiáticos❞ e do próprio ❝milagre japonês❞. O mundo não se resume à Europa e aos países de colonização europeia.

Apresentação

Uma das grandes discussões que fazíamos na Geografia, na época da faculdade, era sobre a inflada contribuição europeia para a civilização humana. Uma pena não termos estudado Jack Goody, mais restrito à História e talvez um desconhecido aos meus professores geógrafos. Desde o primeiro ano, estudando Cartografia, que nós víamos o quanto a Europa tinha posição central em tudo, até mesmo no posicionamento do globo e na nossa forma de ver o mundo. Não se engane: os mapas sempre foram ferramentas de dominação, sempre foram feitos pela posição hegemônica de alguém. A forma como vemos o mundo foi uma convenção definida há muito tempo.

Resenha: O roubo da história, de Jack Goody

Uma coisa que falávamos na faculdade é que a Geografia estuda a raça humana no espaço, a História estuda a raça humana no tempo. Este livro faz exatamente isso, estudando os povos, especialmente do Mediterrâneo e nas cercanias da Europa, sua posição geográfica e proximidade com o Ocidente. E Jack Goody é bem direto ao dizer: muitos historiadores ficam tão limitados ao conhecimento ocidental que acabam não estudando o outro e suas origens. Tal desconhecimento limita a visão do cientista, levando-o a afirmações insustentáveis.

O etnocentrismo, de onde vem o eurocentrismo e suas variantes não são fenômenos novos impulsionados pelo imperialismo britânico. Goody comenta que os gregos torciam o nariz para a Ásia e os romanos já discriminavam os judeus em suas províncias. Todos os povos têm suas variações etnocêntricas e com a Europa também não seria diferente, nem seria a pioneira.

Indicando muitas fontes e leituras ao longo do texto, Goody nos guia por uma análise da herança histórica europeia e como é preciso que a Europa reconheça a negligência de séculos com as influências externas. De tanto impôr sua história no mundo, o mundo a assume como sendo a história oficial. Mas feudalismo, por exemplo, não ocorreu em outros lugares do mundo. Aprendi na escola que o colapso do império romano do Ocidente foi praticamente o fim do mundo, mas Goody aponta cirurgicamente: a Europa Ocidental pode ter caído em um período de sombras, mas Constantinopla ia muitíssimo bem, assim como restante do Mediterrâneo e a Ásia. Isso meu professor de história nunca mencionou.

Liberdade, democracia, universidades, humanismo, o próprio tempo e a forma como o dividimos, já existiam em outras sociedades e foram apropriados ou ressignificados pela Europa. Povos que faziam uma contagem diferente do tempo, por exemplo, sempre foram menosprezados e tidos como "bárbaros". A leitura me fez lembrar imediatamente de Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown e a forma como o povo branco lidava com os nativos, sem compreender sua ligação com a terra nem sua cultura, o que levou aos massacres que já conhecemos.

❝Antiguidade❞ e ❝Feudalismo❞ são definidos num puro contexto europeu, atentos ao desenvolvimento histórico particular deste continente. Os problemas surgem quando se pensa sobre a aplicação desses conceitos em outros tempos e lugares, e suas reais limitações vêm à tona.

Página 33

Dividido em três partes, a primeira trata de uma genealogia sociocultural, onde o autor indica quem roubou o que, onde e como a Antiguidade e o Feudalismo foram criados. Na segunda, uma perspectiva acadêmica, em que Goody debate as afirmações de vários autores; na terceira a última, temos o roubo das instituições, cidades e universidades, a apropriação de diversos termos e até mesmo o amor e suas formas, vistas sempre pelo viés ocidental. Esta última parte, em especial, foi muito legal de se ler. Lembro de uma discussão uma vez de que os franceses teriam inventado o "beijo de língua" e que as trovas de amor romântico surgiram na Europa. Tipo, hein? Como ninguém beijava de língua antes dos "pioneiros" franceses? E os Antigos Egípcios possuíam muitos poemas românticos e sensuais bem antes da Europa.

O caso do amor é exemplar. Alguns autores europeus reivindicaram para os trovadores do século XII a invenção do amor. Outros a atribuíram a um aspecto intrínseco ao cristianismo, como a caridade. Para outros ainda, o amor caracteriza a família europeia (ou especificamente a inglesa) ou o mundo ocidental moderno. Todas essas teses são insustentáveis. Hollywood mercantilizou o ❝amor romântico❞, mas não o inventou, nem os ingleses, ou os cristãos, ou os modernos. Quanto aos trovadores da Provença e da Aquitânia, eles foram muito influenciados por seus vizinhos árabe-espanhóis, herdeiros de uma longa tradição de poesia de amor secular (e religioso) do Oriente Médio, que remonta pelo menos ao ❝Cântico dos Cânticos❞.

Página 337

O livro em si é de 2006, mas a edição enviada pela Contexto é de 2018 e já é a segunda, sendo também a segunda reimpressão, em papel branco simples. A tradução está excelente e ficou por conta de Luiz Sérgio Duarte da Silva, doutor em Sociologia e professor da Universidade Federal de Goiás, cujo nome não aparece nas lojas online junto do nome do autor. Seria um reconhecimento ao trabalho do tradutor colocar seu nome ao lado. Capa fosca e macia e muitas fontes para se consultar no final, além de obras que também estão disponíveis em português.

Obra e realidade
Eu já tinha estudado na faculdade as questões de apropriação europeia de muita coisa e já tinha lido livros do Dee Brown e do Dick Teresi, sobre avanços científicos feitos por povos do Oriente antes de ler este aqui. Queria muito mesmo ter tido acesso a esse material antes, pois teria enriquecido tudo o que nós discutimos na graduação. O livro também passa pela questão do ensino, ainda que sem querer: se os historiadores já saem das universidades sem base para estudo dos povos orientais, como poderá estudá-los? Os cursos não contam com estudos aprofundados e os profissionais saem sem o conhecimento necessário.

Jack Goody

Jack Goody foi um dos mais importantes historiadores e antropólogos britânicos, professor da Universidade Cambridge, escritor e palestrante. Era Cavaleiro da Ordem do Império Britânico e membro da Academia Nacional de Ciências. Faleceu em 2015.

Pontos positivos
Bem escrito
Bem pesquisado
Muitas fontes e notas adicionais
Pontos negativos

Conhecimento prévio de certos termos
Pode ser devagar

Título: O Roubo da História: como europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente
Título original em francês: The Theft of History
Autor: Jack Goody
Tradutor: Luiz Sérgio Duarte da Silva
Editora: Contexto
Páginas: 368
Ano de lançamento: 2018 (2ª edição)
Onde comprar: na Amazon

Avaliação do MS?
Fiquei muito feliz em ter lido esse livro, em ter este livro em mãos e poder consultá-lo sempre que necessário. Também espero que a história não lance mãos de estereótipos na hora de trabalhar com culturas não-europeias, pois é bem óbvio que isso foi um fator preponderante na hora de analisar outros povos, perpetuando conceitos errôneos e estigmatizantes. Li algumas resenhas em inglês depois de terminar essa leitura e não me surpreendi em ver uns supremacistas brancos bem irritados com Goody por suas afirmações. O que, acredito, seja uma grande vitória do livro. Uma leitura essencial e obrigatória!

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Acho que o link pra Amazon está errado, tá levando pra outro livro.
    Mas adorei a resenha, tô pensando em aproveitar a feira do livro da UNESP pra comprar.

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    1. Ooops! Arrumado! Aproveite e compre porque vale muito à pena. ♡

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  2. Interessante a abordagem do autor. Faz lembrar que boa parte do que hoje se considera grandes filósofos gregos e romanos, estudaram em parte da África.

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  3. Oi Sybylla! Definitivamente um livro obrigatório!! Sabe, um material assim me deixa feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz que alguém se preocupa em expor o assunto, e triste pelo modo como a Europa se apropriou, mas fico triste também com a forma como a historiografia aparece para nós. De um lado, historiadores se ausentam da responsabilidade de não buscarem recortes não eurocêntricos. Do outro, historiadores que se debruçam sobre isso estão tão invisíveis ainda (e há muitos, muitos mesmo). Em parte isso é culpa da classe, porque ainda há uma grande distância entre a história acadêmica e a população, mas também parece que os historiadores que alcançam sucesso com o público estão quase sempre falando de temas eurocêntricos. Eu pesquiso a civilização muçulmana medieval e há uma quantidade razoável de material excelente e acessível que é pouco conhecido ou está por ser traduzido. Espero que um livro como este sendo reeditado incentive as editoras a publicarem mais sobre, os próprios historiadores a divulgarem mais o próprio trabalho e os leitores a se aproximarem desse tipo de conteúdo!

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  4. Essa resenha foi muito bem escrita, colocada, explicada. Estou no 1° ano de Licenciatura em História, no entanto minha universidade, (UENP) visa muito a pesquisa e uma formação ampla. Autores como Goody são muito recomendados e acabam até virando referência de estudos. Me deparar com um livro dessa magnitude logo no primeiro ano foi bem impactante, não só porque desconstrói o conhecimento ocidentalizado e eurocêntrico pelo qual fomos ensinados, mas porque traz informações valiosas e fatos que talvez nem saberíamos se não houvesse a leitura desse livro. Sua resenha me ajudou muito a compreender a questão da Antiguidade de Goody, compreender o que ele quer dizer entre suas linhas minuciosamente escritas. Obrigado pela contribuição, Lady Sybylla

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