A importância de Frankenstein

Mesmo que você nunca tenha lido o livro ou tenha visto qualquer filme que o adaptou, você conhece a face triste e melancólica de Boris Karloff em preto e branco e, provavelmente, acha que o nome da criatura é Frankenstein. Esta é uma daquelas obras que muita gente já ouviu falar, que está no nosso inconsciente coletivo e cuja relevância perdura desde sua primeira publicação.




Viktor Frankenstein é um genovês rico, apaixonado pela ciência. Após a morte da mãe, de alguma maneira, ele consegue manipular carne e tecidos e tendões, ao criar um novo ser, construído com partes de cadáveres, que retorna à vida. O livro não deixa bem claro como ele faz isso, pois é mencionado apenas o galvanismo, e é daí que entendemos que foi através da eletricidade, uma tecnologia que, para a época, guardava qualquer coisa mítica e sobrenatural a respeito. No entanto, Viktor fica completamente aterrorizado com a bestialidade de sua criação e a abandona. A criatura não é um monstro que balbucia palavras desconexas como vimos em muitos filmes, ele na verdade é educado, tendo se virado sozinho, querendo receber a compreensão da sociedade, porém vai ficando cada vez mais ressentido de seu criador, que lhe repudia, partindo então para a vingança.

Muito do que imaginamos a respeito de um "cientista louco" hoje é graças à forma como Viktor foi retratado no cinema. Apesar de a adolescente Mary Shelley não ter cunhado o termo em si, seu estereótipo perdurou conforme a obra foi adaptada. Mas Viktor não é louco. É um cientista dedicado, um grande defensor das ciências, que não viu problemas em quebrar leis e ir contra a moral para conduzir experimentos. Em nome da ciência, Viktor criou um novo ser e o abandonou quando ele mais precisava, relutando em assumir sua responsabilidade a respeito.

A criatura, ou "monstro", como Viktor se refere a ele diversas vezes ao longo do romance, representa o Outro. Aquele distante de nós, o fora do padrão, o diferente, o bizarro. Este é um componente que permeia a ficção científica desde suas origens com a própria Mary Shelley. A raça humana tem pavor do desconhecido, tem pavor daquilo que não compreende. E ainda lutamos para compreender a vida, a morte, e tudo o que fica no meio entre elas. Ao desafiar o leitor com uma inteligência artificial, ela quebra as barreiras entre o sagrado e o profano, colocando o outro como um protagonista, nos mostrando seu lado bom e seu lado ruim, pois é assim que todos nós somos. E mesmo entre humanos, tendemos a separar as pessoas por cor, por renda, por gênero, por orientação sexual, por ideias, por idiomas, por linhas em mapas. E a criatura, é repudiada pelo o que? Simplesmente por existir. Como também o fazemos.

A ficção científica ainda luta para compreender o Outro. Nos filmes de invasão alienígena, os aliens é que são agressivos, beligerantes, querendo nossos recursos, nossa água, nosso planeta, nos matar pura e simplesmente. Mas a Dra. Louise Banks nos mostra que por mais distante de nós e incompreensíveis que sejam, é preciso nos esforçar para construir uma ponte que possibilite o diálogo. Se você sempre mostra o Outro como um ser maligno, o que isso diz de sua forma de lidar com o que está fora da curva?

Se valendo do uso inescrupuloso da ciência, Mary nos mostra que mesmo que as intenções da ciência sejam boas, na mão de qualquer pessoa com más intenções, suas consequências podem ser desastrosas. Veja o exemplo da bomba atômica. Enquanto Marie Curie usou sua descoberta do rádio e do polônio para auxiliar médicos a fazer diagnósticos mais precisos, os mesmos elementos foram usados na forma de armas. A radiatividade e seus potenciais efeitos devastadores chamaram a atenção daqueles que queriam armas mais devastadoras.

Mary Shelley nos envereda por um devaneio a cerca da responsabilidade moral de indivíduos com a ciência, da queda do ser humano diante da própria criação. Ela não quis dizer que a ciência é danosa, é imoral, que sempre dará errado. Se as motivações de Viktor fossem em curar doenças, o tom do livro seria outro. O que ela quer nos mostrar é que mesmo incríveis invenções voltadas para o bem, podem se tornar maléficas nas mãos de gente arrogante, incitada pela vaidade do saber. Eis o nosso Viktor, que além de negar a responsabilidade por seus atos, abomina o que fez ao invés de tomar uma atitude e resolver o problema. Ciência é feita para resolver problemas. Ele nada fez. A ineficiência de Viktor é também a nossa.

O Prometeu Moderno ilustra a ruína de Viktor diante do que fez, em uma destruição física, moral, pessoal, profissional. Prometeu, na tentativa de dar o fogo, reservado aos deuses, à humanidade, foi severamente punido por Zeus e deu aos humanos a habilidade de poder queimar seu próprio mundo, sem pensar nas consequências de seus atos. Na tentativa de criar a vida, Viktor leva à destruição de inúmeras outras. Valeu à pena? Tentar emular o divino compensou? O que ele faria se tivesse sido um experimento que lhe trouxesse satisfação? Já pensou um exército de corpos reanimados lutando em guerras?

Arte de Rjrazar1 - DeviantArt

Stephen Jay Gould dizia que não há nada errado com os objetivos científicos de Viktor. Viktor falhou como ser humano, não como cientista. Ele falhou em sua responsabilidades enquanto criador, dotado de uma moral ambígua, de não cuidar daquele ser, que somente quando tem seus direitos negados pelo próprio cientista, é que se torna verdadeiramente mau. Foi negada à criatura sua condição humana, de um ser de direitos. Viktor não lhe ensinou bondade, ou o educou. Ele deixou o ser à própria sorte, contando que se varresse o problema para debaixo do tapete tudo se resolveria. Para mim, o monstro de verdade nessa história é Viktor Frankenstein

Até mais!

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Comentários

  1. Li o livro várias vezes, mas só quando o comprei pude realmente entrar na historia e dar a atenção necessária. Um livro de horror, e horror por conta desse pavor que temos do desconhecido. Amei seu texto. Tenho um carinho muito grande por esse livro, talvez pelo incomodo que ele me traz.

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